1.“Enquanto os poemas podem muito bem ocorrer, é muito melhor que eles sejam causados”, disse o poeta Wallace Stevens. Descobri a frase há pouco, enquanto flanava por um livro de ensaios. Pareceu-me inteligente a maneira de dizer, escapando à platitude dos 90% de transpiração (marca de qualquer afazer humano).
- Uma busca pela escrita, por seus indícios, por suas origens, com mais arqueologia do que sorte, repassando de maneira ativa a experiência de estarmos no mundo, à caça do que pode ser convertido em palavras.
- Coisa que a inspiração faz de imediato, quando vem, se vem.
- Para mim ela quase sempre veio arredia, manhosa, senão enganadora. Agradeço, em retrospectiva, ter vivido meus anos de formação na era analógica, quando a distância entre a mente e o livro era maior. Sem mediação, eu teria lançado frases e ideias nas redes que até poderiam engambelar alguns desavisados (entre eles eu mesmo), mas que no dia seguinte deixariam apenas o constrangimento das coisas pouco elaboradas (o imediatismo das atuais publicações, a ausência daquela gaveta, de fermentação e cozimento, quem sabe tudo isso explique o valor abatumado de muito do que ora lemos).
- Invejo a habilidade dos argentinos de não escreverem com um imediatismo capenga. Os principais diários parecem sumamente bem escritos. Nem falo da literatura.
- De todo modo, não quero reclamar.
- Quero crer que recebi a real graça da inspiração umas poucas vezes. Em geral, no entanto, quando a inspiração vem, agrada-lhe o capricho de aparecer na hora em que não temos como anotá-la: no que sobrevive de um sonho às quatro da manhã, ou enquanto estou ensaboado, fustigando os azulejos com alguma ária, ou em reuniões e labutas intermináveis das quais não podemos fugir, presenciais ou virtuais.
- Mas e se pudéssemos ver essa ausência de poemas soprados pelas musas, como quer o Stevens, como um convite à virtude, como um processo criativo libertador, imprevisível, surpreendente?
- Assim me posto em frente ao computador, e espero, apenas o cabeçalho gracioso da coluna, Buenos Aires, Hora:Zero escrito.
- Dou quinze minutos à inspiração, a cortesia máxima para um atraso. Depois começo a vasculhar os dias idos, os desconfortos do presente, à procura de um fio condutor que permita ao mundo interior voltar à superfície.
- Repasso falas dos que não estão mais, memórias guardadas também no corpo, as escolhas equivocadas que ainda agora repercutem. Os encontros frustrados, as alegrias incapazes de durar, a felicidade da cama dividida, o conforto do silêncio das manhãs. Evoco pratos que não serão mais preparados, o feijão da minha avó, e outras tantas receitas irrepetíveis.
- Tudo isso podemos causar, se nos pomos a escrever.
- E quem sabe, enfim, escrevamos.