- Trata-se de uma canção de Robin Gibb, Boys do fall in love, desaparecida de minhas listas há quase quatro décadas, que a rádio de flashbacks desperta de seu sono em meio à avenida Libertador.
- Um refrão de tal modo inesquecível que eu o acompanho num embromation como fazia em 1984 ou 85.
- Com minha inteligência natural, ainda que baixa, consigo acrescentar a faixa aos meus favoritos do celular. E assim sofrem os vizinhos desde então: no espelho embaçado do banheiro é possível cantar com o despudor dos dez anos.
- Por essas ligações espúrias dos dispositivos, o clipe da canção apareceu em meu YouTube.
- Uma nave espacial em 2184, com direito a muitos penteados com permanentes, trajes de lamê e a infame dança do robô, que ainda haveria de infernizar salões de baile do mundo todo.
- Em algum outro lugar já disse que a estética do futuro é sempre a estética do presente de quando a obra é composta. Assim como em Laranja Mecânica se escuta som num pequeno k7, no clipe televisões e cds são os artefatos do amanhã.
- Que é sempre hoje.
- Infelizmente os que passamos somos nós.
- Assim que o vapor cede, antes do fim da canção, não tenho mais os dez anos da dancinha dos autômatos, a Rádio Universal, assim como o programa de clipes da Rede Manchete, há muito existem no país do subúrbio sereno em que me criei, país que não perdera ainda nenhum de seus habitantes.
- A música é mesmo uma arte monstruosa. Em sua breve vida de três minutos, a matéria condensada do tempo tem a densidade de um pedaço de carne.
- E então esses segundos de silêncio que só existem, ou existiram, em 2023.
- Como não opero nenhum comando no celular, os olhos vermelhos no espelho, logo o algoritmo dispara outro sucesso oitentoso, errado em seu objetivo meramente temporal.
- Quem sabe se lhe acrescentassem uma linha de programação equivalente à dança do robô.
Buenos Aires, Hora:Zero 29
Em algum outro lugar já disse que a estética do futuro é sempre a estética do presente
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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