- Por vezes sinto vergonha de escrever pouco. Há sempre muitas vidas que não sobreviverão nem para serem buscadas pelos robozinhos-fetiche que criam textos e maravilhas sob demanda.
- Se não nós, quem?
- É um desafio que constantemente lanço nas oficinas de escrita pessoal. Se não formos nós, quem contará a vida das pessoas que dividiram este curto tempo conosco. Parece-me uma eternidade triste aquela que venha a ser erguida pelo que postamos, compartilhamos, só não menos triste, é provável, que ser lembrado for feitos bustificantes: formado em tal ano, professor em tal outro, empregado sei lá aonde.
- Feitos. Quanto a mim, preferia ser lembrado pelas tardes vagabundas olhando pela janela da sala, ancorado num café da Arenales. Peça ao robozinho para que escreva divagações inúteis num café, e é possível que ele encontre fórmulas edificantes para aproveitar melhor o tempo, salvar o planeta, cuidar do lixo reciclável ou alertar-nos sobre a morte da democracia.
- Se não nós, quem?
- Para minha pele de criança, beijar meu avô paterno era passar a cara numa lixa. Ainda hoje creio que os homens de antigamente tinham um outro tipo de barba, curtida ao sol, à lida no campo, não sei. Hoje alinho produtos para me afeitar sem irritação. Robozinho, escreva sobre métodos mais suaves de barbear.
- Minha avó materna, já cega de um olho, continuava costurando à mão com uma maestria capaz de rendas e bordados. Daí talvez a admiração que tenho pela destreza sob circunstâncias adversas. Ser destro num estúdio é uma coisa louvável. Mas só penso admirável a destreza ao vivo, onde não há o controle enervante da repetição. Por mais shows que alguém faça, a possibilidade do erro está sempre ali. O que é o maior encanto dos álbuns clássicos de jazz. Eram gravados no estúdio, mas geralmente em uma só tomada ao vivo. A energia criativa, o risco e a ousadia são tão intensos que nem as conversões sonoras esfriam o fator humano.
- Algumas folhas começam a cobrir as calçadas da Avenida Las Heras. É finalmente o outono portenho. Sinto que meu espanhol melhora devagar, um tanto menos titubeante de que quando chegamos no ano passado. Aos poucos me arrisco a escrever nesta língua da qual apenas traduzia. Não é nem de perto a mesma coisa.
- Porque há que vencer a preguiça, e isso explica muito sobre o atual modo de vida em relação aos textos. Estão todos preguiçosos há décadas. Artigos requentados, citações copiadas e coladas a esmo, textos cujas introduções se repetem nas conclusões, ou seja, nem o texto nem nós nada aprendemos. Escrever é o contrário disso. Escrever é lutar para que o que vivemos, para que nossa inteligência (se a temos) exista num outro meio. Se não existe essa luta, todo pensamento se converte em mera informação, expressa da maneira mais formulaica, num jogo que todos jogam, mas ninguém sente, do qual todos conhecem as regras, mas delas não fazem proveito, porque não as burlam.
- Palavras sem amor. Palavras que não resgatam os afetos dos que estão conosco ou dos que já não estão.
- Temos amigos que não voltaremos a ver, pois imenso é o mundo. Ruas que não voltaremos a cruzar, nem cedo, nem tarde. As luzes de abril na hora do recreio em 1983 estarão guardadas em que dispositivo se não as declaramos: O verde iridescente das folhas, o sol branco nas pedras de arenito, o vermelho enferrujado dos balanços, o azul do uniforme das tias, o amarelo de um muro que não existe mais.
- Se não nós, quem?
Buenos Aires, Hora:Zero 30
Se não formos nós, quem contará a vida das pessoas que dividiram este curto tempo conosco
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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