1. Ao início toda nova tecnologia diz mais sobre o passado do que os possíveis avanços que venha a trazer. A ruptura da antiga ordem é o efeito primário. Os novos usos, em geral transformadores de nosso modo de vida, vêm a reboque.
2. O trunfo das novidades reside em pôr às claras os desejos do tempo que as gerou. As máquinas da Revolução Industrial são a materialização do sonho de que algum ente pudesse trabalhar 24 horas sem parar, bufando vapores, enquanto tornava menos horrível dar às criaturas humanas jornadas só um pouco menores.
3. As bombas sobre o Japão, agentes da paz (eis o alegado efeito secundário), traziam à luz um desejo que se manifestava nos tantos genocídios humanos em todas as eras: o do extermínio total. Quem não lembra da lubricidade com que dirigentes falavam (e ainda falam) de sua potência de destruir não sei quantas vezes a Terra com seus reluzentes armamentos?
4. Quando não é preciso mais do que uma.
5. O louvor pernicioso à tecnologia não pode estar mais explícito do que no Manifesto Futurista, com seu desejo de eliminar os fracos, tudo o que fosse velho, o que não fosse a pura força do soco na cara.
6. É para este gosto pela eliminação do que havia antes que devemos olhar quando uma nova tecnologia surge. Em outras palavras, talvez porque sou poeta, nunca deixo de reparar na forma dos enunciados. A nova vida prometida pelo gadget tem sempre qualquer coisa da estética de Goebbels.
7. A tevê matará o rádio e o cinema. A internet, a tevê. Os leitores digitais, os livros. O chat GTP, os textos. Declarações que na prática revelam muito mais sobre quem as replica do que sobre as coisas em si.
8. Mas é essa virtude de poder trazer à luz do sol o que se deseja na intimidade o que aqui me interessa.
9. Há anos que muito do jornalismo não é mais do que um copiar e colar de notícias das grandes agências. Talvez há mais tempo, os trabalhos acadêmicos são um pastiche engendrado por alunos com o auxílio do google para professores que não lerão nada, exceto o que previamente pediram. Assim também com as sentenças judiciais, com as revistas e periódicos científicos, com a literatura feita para consumo rápido, para todas as publicações engajadas nas causas do momento. Textos que ninguém quer escrever para pessoas que não os querem ler.
10. Aquilo que se revela como temor, muitas vezes é a própria voz do desejo. Nossa, o chat esse vai acabar com os textos humanos. Ai, que delícia.
11. Porque esses textos já estão mortos mesmo, há décadas, qualquer máquina é capaz de reproduzi-los e recriá-los, com uma inteligência que não é artificial, mas sim necrófila.
12. Quem sabe quando virá o efeito secundário, o progresso. Por ora são umas exéquias há tanto esperadas: odiamos pensar e sentir por meio de textos, é trabalhoso ser um indivíduo num texto, é frustrante não saber se haverá leitores, é árduo demais cogitar com independência. Abençoada máquina que mata a escrita por todos nós. Glória aos algoritmos nas alturas!
13. Como demoraste, chat vingador. Diremos ter medo de que sintetizes proteínas e o diabo a quatro, que destruas a raça humana. Qualquer medo que disfarce a euforia de nos vermos livres da escrita e da leitura, essa obrigação obsoleta.
Foto da Capa: Julia Larson/Pexels