- Durante a experiência devidamente esmagadora de um voo, apertado entre a janela e o braço da poltrona, em busca de uma fuga qualquer do momento, voltei a ler I remember, do Joe Brainard. Que obra tocante. De ler várias vezes. E tem a virtude de quando se a lê, dar vontade de fazer mais uma vez este exercício de conversão de memórias em pequenos momentos autônomos. Assim que aguentem.
- Eu me lembro de um sujeito que passava com um silvo irritante nas tardes de Capão da Canoa, que meu avô materno dizia ser um amolador. Por muito tempo achei que sua missão no lombo de uma bicicleta fosse amolar as pessoas.
- Eu me lembro do cheiro de Spectraban.
- Eu me lembro do gosto das gotas de Colubiazol.
- Eu me lembro do aniversário de pessoas que já não estão.
- Eu me lembro do dia em que a Tainá disse que ainda moraríamos em Buenos Aires, e de como meu ceticismo restou vencido, ao menos nesta questão.
- Eu me lembro que a nossa colunista Cássia Zanon um dia errou numa receita de carbonara, compensada por um prato delicioso no almoço seguinte, mas que nunca lhe pareceu suficiente para quitar a dívida.
- Eu me lembro das promoções na locação de fitas VHS na Casinha do Vídeo. E também das multas por devolver sem rebobinar. Numa ocasião mandaram uma fita pornô no lugar de um desenho infantil. Fingi escândalo ao perceber o erro, mas depois assisti ao engano sozinho.
- Eu me lembro de me perder várias vezes na Mesbla do centro.
- Eu me lembro de meu irmão e meu primo desfilando como misses através do teto conversível de um Escort XR3. Acho que o carro era cinza metálico e tinha faróis de neblina.
- Eu me lembro de que durante anos evitei passar debaixo de marquises depois do episódio da Arapuã. Tenho a impressão de que o mascote da loja, o Arapinha, também acabou esmagado.
- Eu me lembro da sétima vez em que meu amigo Ronaldo quebrou o mesmo pé. Por sorte seu pai era ortopedista.
- Eu me lembro de quando era impossível ter colesterol alto.
- Eu me lembro de todas as guloseimas que podiam ser obtidas com vales-transportes na rua Uruguai em 1991.
- Eu me lembro de uma guria ruiva do colégio que usava uma franja igual à da Solange na novela Vale Tudo. Causava sensação nas reuniões dançantes de 1988.
- Eu me lembro de achar que tinha talento em 1995. É uma coisa que acontece quando ainda não descobrimos nada e supomos tudo.
- Eu me lembro, enquanto escrevo, que as companhias aéreas são um sapato 41 para quem calça 44.
Buenos Aires, Hora:Zero 32
Eu me lembro do cheiro de Spectraban. Eu me lembro do gosto das gotas de Colubiazol
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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