- Nunca estive no Japão. Conheço das paisagens japonesas o que as gravuras dos mestres e os filmes foram capazes de me oferecer, o fantástico monte Fuji, uns rios por entre montanhas cobertas por bambuzais.
- Não poderei, acima de tudo, estar no Japão de há novecentos anos, com seus xogunatos, seus violentos dilemas políticos, suas cortes em que a poesia (como na China da Dinastia Tang) era um passaporte para os melhores salões, para os cargos de confiança, ai de mim, nasci sempre tarde e no lugar errado.
- Uma cultura de elegantes ideais estéticos, como o gosto pela contenção, por compreender o quão triste é o caráter fugidio de todas as coisas, por uma alta suscetibilidade à passagem das estações do ano, com um especial destaque às cerejeiras em flor na primavera e aos bordos a perder outonalmente suas folhas mais vermelhas que um incêndio.
- Posso, contudo, numa espécie de consolação, contemplar o mundo nipônico por meio da famosa antologia do filólogo e poeta Fujiwara no Teika, compilada no século XIII: Cem poetas, um poema de cada um.
- Apesar das divergentes traduções, da complexa conversão dos ideogramas — com diferenças marcantes nos resultados finais —, o estado de espírito evocado pelos versos quase sempre sobrevive. Na tarde de outono em Buenos Aires, em mais um canto do mundo que habito, há versos que ainda resistem.
- Não se trata bem de entrarmos numa outra forma de pensamento.
- Também não é um mero apelo ao sentir ou a um despertar de nossas sensibilidades. É um estar sem estar. O mundo parece ralentar seus movimentos, a água faz-se mais sólida, as folhas e as flores caem vagarosas, a luz da natureza adquire uma constância de estúdio fotográfico, e, de algum modo, passamos a habitar integralmente a realidade lírica.
- E num relance a perdemos.
- Uma iluminação compacta, um universo instantâneo. E depois, outra vez, a voragem da vida, o emplastramento dos dias, a inconstância carniceira, amiga do pó, do vento, do nada.
- A vitória das atribulações.
- Até o próximo poema da antologia, o do jovem xogum Minamoto no Sanetomo, que faz com que o acompanhemos à margem de um rio, para vermos o retorno de um pequeno barco pesqueiro. Seu lamento nos lembra de quão efêmeras são as tréguas dos afazeres, convocando-nos a habitar o momento retratado a ponto de fazê-lo nosso, pela eternidade de cinco versos.
- Se o mundo pudesse apenas/ Manter-se sempre assim, / Alguns pescadores/ Cruzando num barco a remo / Em direção à margem do rio.
Buenos Aires, Hora:Zero 33
Nunca estive no Japão. Conheço das paisagens japonesas o que as gravuras dos mestres e os filmes foram capazes de me oferecer
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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