- Da minha vida extinta de tradutor profissional guardo, acima de tudo, um aprendizado sobre o quão assombrosas e intransponíveis podem ser certas expressões de um idioma, em suas deliciosas construções populares, tradicionais ou revolucionárias, nos usos literários que dependem do som, e eu diria até do aspecto visual das palavras.
- Meses depois de uma tradução, eu ainda me pegava pensado nas soluções insuficiente que tomara.
- Somebody has to put him out of his misery. Literalmente, “Alguém deveria libertá-lo de sua miséria”. Faz sentido em português? Creio ser compreensível, mas não utilizável, o que obrigaria o tradutor a saídas, de acordo com o contexto, simplificadoras, e, por simplificadoras, mais cinzentas.
- O ofício de pronto me ensinou a aceitar essas perdas. O que me parece lamentável é o empobrecimento do português dentro do português. Por isso — e nenhuma ofensa pretendida (aí outra expressão do inglês que fica estranha em versão) —, não compreendo por que gastar energia em textos — e são tantos nas redes — preocupados tão-somente com a adesão de seus leitores.
- Nada produz maior dano ao estilo, apontava o poeta Joseph Brodsky, do que a certeza dos ideólogos, a simplificação barata da razão, que leva aos chavões, bordões e lemas, e a exploração banal dos sentimentos, que leva ao sentimentalismo. Para ele, como para Kundera, Amós Oz e Orwell, a literatura seria uma vacina contra o maniqueísmo, contra o fanatismo, por sua natural diversidade, por sua busca incessante por um maior poder de revelação verbal.
- Aqui em Buenos Aires escuto expressões maravilhosas de todo intraduzíveis sem que se lhes perca o inusitado, a inventividade, o detalhe que está naturalmente no particular.
- Fui para o inglês (e quase para o castelhano) quando queria falar de uma expressão nossa, brasileira e antiga, saborosa em suas ocultações e mistérios, “conhecer alguém de outros carnavais”.
- E então outra coisa fundamental acontece para os nativos: somos convidados a rejeitar o sentido literal, mas nunca o perdemos totalmente de vista. Na tradução, isto quase sempre se perde. Quando alguém diz, “te conheço de outros carnavais”, uma parte em mim imagina as duas pessoas num baile esfumaçado da SAT, em batalhas de confete e serpentina, tresandando lança-perfume, suor e cachaça, cantando marchinhas ora proibidas, escondidos nos cantos mais escuros do salão.
- Mas a expressão se usava só no sentido figurado, alguém dirá.
- Ler é ler tudo, tudo junto, às loucas, na mais delirante e íntima das folias.
Buenos Aires, Hora:Zero — 36
Nada produz maior dano ao estilo, apontava o poeta Joseph Brodsky, do que a certeza dos ideólogos, a simplificação barata da razão
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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