1. A unidade superior ao poema é a vida, disse o crítico Heinrich Lausberg.
2. O que explica o que sentimos diante de um poema como Tabacaria, de Álvaro de Campos. O desespero existencial, a presença inegável e misteriosa da realidade, os mundos que estão para além do alcance de nossos sentidos, a conveniência da memória, nosso corpo que somente nós habitamos, o que de filosofia, fisiologia, metafísica e projeção que experimentamos a cada instante.
3. Um poema é um universo sustentado enquanto dura a canção de seus versos. Uma unidade muito próxima da vida quando a percebemos, naquele misto entre ação e contemplação, entre pensamento e emoção.
4. Por isso desconfio que houve algum defeito no sistema educacional e cultural no que diz respeito à leitura de poesia. Apesar do esforço de ótimos professores, ainda há uma omissão total do gênero nas escolas ou a reprodução de certo maravilhamento sonoro, como se um poema fosse uma série de rimas que conformam arroubos do coração.
5. Muitas vezes jurado em concursos, boa parte das vezes ainda há essa mescla de subparnasianismo com mau romantismo. Dois afastamentos da vida que um grande poema busca.
6. A outra ponta dessa miséria são os poemas frouxos das redes sociais, em que o formalismo se foi, mas sobrevivem as pragas do mau romantismo: o autocentramento, a autocondescendência, a egolatria. O mundo, as sensações universais, a dúvida do existirmos, nada disso está ali. Quando há metafísica, costuma ser tão rala quanto as sabedorias dos programas de auditório.
7. Joaquín Giannuzzzi, um grande poeta argentino dos anos 1960, talvez nos ajude a compreender a unidade quase tão poderosa quanto a da vida de que falavas Lausberg: Creio sim na deterioração universal,/ nas falhas do mecanismo que não entraram na cabeça de Kepler,/ no movimento falso do músculo/ na cláusula ambígua do tratado de paz:/ Dons de um mesmo reino onde as proporções são apenas um acidente/ e a falta de sentido e de fidelidade a única coisa séria;/ pedras na vesícula, explosões no sol,/ um percevejo aplastado e uma clamorosa colisão na cabeleira de Andrômeda.
8. A vida em sua amplidão. Uma máxima fidelidade que implica em contemplar o painel múltiplo da existência, a um tempo dentro e fora de cada um de nós.
9. Se fosse possível apresentar a poesia dessa maneira aos novos leitores (e mesmo aos antigos que não simpatizam com a lírica), talvez houvesse para muito mais gente este lugar em que a simulação não é resultado de uma soma de gadgets, que nos envolvem apenas desde fora, mas uma circunstância em que sentimos a vida totalmente, em toda a sua precária e maravilhosa condição humana, em toda a sua riqueza exterior e natural.
10. A maior das unidades, excetuada a própria vida.
*Texto originalmente publicado aqui em 7 de junho de 2023