- A unidade superior ao poema é a vida, disse o crítico Heinrich Lausberg.
- O que explica o que sentimos diante de um poema como Tabacaria, de Álvaro de Campos. O desespero existencial, a presença inegável e misteriosa da realidade, os mundos que estão para além do alcance de nossos sentidos, a conveniência da memória, nosso corpo que somente nós habitamos, o que de filosofia, fisiologia, metafísica e projeção que experimentamos a cada instante.
- Um poema é um universo sustentado enquanto dura a canção de seus versos. Uma unidade muito próxima da vida quando a percebemos, naquele misto entre ação e contemplação, entre pensamento e emoção.
- Por isso desconfio que houve algum defeito no sistema educacional e cultural no que diz respeito à leitura de poesia. Apesar do esforço de ótimos professores, ainda há uma omissão total do gênero nas escolas ou a reprodução de certo maravilhamento sonoro, como se um poema fosse uma série de rimas que conformam arroubos do coração.
- Muitas vezes jurado em concursos, boa parte das vezes ainda há essa mescla de subparnasianismo com mau romantismo. Dois afastamentos da vida que um grande poema busca.
- A outra ponta dessa miséria são os poemas frouxos das redes sociais, em que o formalismo se foi, mas sobrevivem as pragas do mau romantismo: o autocentramento, a autocondescendência, a egolatria. O mundo, as sensações universais, a dúvida do existirmos, nada disso está ali. Quando há metafísica, costuma ser tão rala quanto as sabedorias dos programas de auditório.
- Joaquín Giannuzzzi, um grande poeta argentino dos anos 1960, talvez nos ajude a compreender a unidade quase tão poderosa quanto a da vida de que falavas Lausberg: Creio sim na deterioração universal,/ nas falhas do mecanismo que não entraram na cabeça de Kepler,/ no movimento falso do músculo/ na cláusula ambígua do tratado de paz:/ Dons de um mesmo reino onde as proporções são apenas um acidente/ e a falta de sentido e de fidelidade a única coisa séria;/ pedras na vesícula, explosões no sol,/ um percevejo aplastado e uma clamorosa colisão na cabeleira de Andrômeda.
- A vida em sua amplidão. Uma máxima fidelidade que implica em contemplar o painel múltiplo da existência, a um tempo dentro e fora de cada um de nós.
- Se fosse possível apresentar a poesia dessa maneira aos novos leitores (e mesmo aos antigos que não simpatizam com a lírica), talvez houvesse para muito mais gente este lugar em que a simulação não é resultado de uma soma de gadgets, que nos envolvem apenas desde fora, mas uma circunstância em que sentimos a vida totalmente, em toda a sua precária e maravilhosa condição humana, em toda a sua riqueza exterior e natural.
- A maior das unidades, excetuada a própria vida.
Buenos Aires, Hora:Zero — 37
Um poema é um universo sustentado enquanto dura a canção de seus versos. Uma unidade muito próxima da vida quando a percebemos
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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