- Na banca a Revista Ñ, principal suplemento literário do país, eu diria da América Latina, traz estampada a maravilhosa cara de buldogue da Patricia Highsmith (foto da capa), para mim uma das grandes do gênero policial: misteriosa, bizarra, perversa e divertida, criadora do Ripley, e também uma perspicaz escritora para além dos nichos. Acabam de sair aqui seus diários e cadernos de anotação.
- Há uma foto dela junto à máquina de escrever, um cigarro pendendo dos lábios que é a minha favorita. É possível perceber que ela está se divertindo. Ultimamente ando um pouco cansado de fotos sérias de autores, fotos emolduradas em intelectualidade, as fotos para que muitas vezes posei.
- No mesmo suplemento, há uma antiga promessa literária argentina dos anos 2000, que àquela época já se deixava enquadrar em meio a fumos de existencialismo francês. O tempo só aumentou-lhe sua aparente seriedade.
- Por isso gosto tanto das fotos de Manuel Bandeira. Há ali muitas coisas que se superpõem ao “retrato de escritor de prestígio”.
- Em seu rosto está a gênese de seus versos, de uma poesia que é a segunda coisa mais próxima da vida depois da própria vida.
- Os dias seriam mais bonitos, mais dinâmicos, desmesuradamente mais alegres, ou também mais melancólicos, por que não, se pudéssemos tê-los condensados em versos de Bandeira, como eu disse certa feita.
- O vendedor da banca estranha o meu olhar fixo para a capa e diz que precisa fechar. Mas já te paguei, penso, só estou a folhear a revista.
- Coisas que acontecem durante um devaneio. Pergunto a ele se gosta de retratos de escritores.
- Gosto das fotos do Borges.
- Não esperava menos de um argentino cuja banca é guarnecida por bandeiras alvicelestes.
- Queria dividir com ele a ideia de que a antiga promessa das letras locais fracassou pelo modo como se deixava fotografar, por seu provável encantamento ao ver o cabelo arranjado, a maquiagem efetiva, o olhar de filósofa inquiridora. Pensei em O espelho, de Machado de Assis.
- Uma senhora — muito senhora mesmo — entrou na conversa dizendo que lhe encantavam os retratos da Evita. Não creio ter visto muitos, respondi.
- Pues andale, pibe.
- Um pibe com a barba já quase branca.
- Em algum lugar do Brasil deve estar meu DVD com o filme do Talentoso Ripley. Dobro o suplemento e volto para o prédio, fechando atrás de mim a estrondosa sinfonia de motores da Avenida Las Heras. Vou preparar o almoço, não sem antes beber o café que eu mesmo preparei, como no verso de Bandeira. Em poucos dias a Revista Ñ será usada na faxina ou na parrilla. Farei questão de que a falsa promessa se consuma primeiro.
Buenos Aires, Hora:Zero — 39
Ultimamente ando um pouco cansado de fotos sérias de autores, fotos emolduradas em intelectualidade
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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