- Através da ampla vitrine do Café Tabac, correm os carros pela Avenida del Libertador agitada. Mordisco uma medialuna doce, tenra, é a manteiga, não estarei vivo para sempre.
- Faz frio em Buenos Aires, o cinza é uma cor que lhe cai bem.
- Esses dias, Tainá me perguntou quais eram as cores da introspecção, e não sei, assim como desconheço as cores da sala das reminiscências, antes que elas se projetem. Daria um bom programa para os canais de casa: decoração de interiores humanos.
- Este ano são trinta anos desde que entrei na faculdade. Jovens naqueles inícios de anos 1990, chegamos sem causas, sem acreditar — senão vagamente — na política, dispostos a abraçar as pessoas por causa da música, dos filmes e dos livros, das ideias — senão vagamente — filosóficas, com que gastávamos as noites, entre bebidas e obras bizarras do cinema B, um tipo de existência que o próprio século XX viria a sepultar.
- Tenho aqui no café o novo livro de Bret Easton Ellis, uma vez o enfant terrible da literatura estadunidense com seu Psicopata americano, agora um senhor californiano, que tem escrito coisas muito boas no campo da autoficção. The shreads, ainda sem tradução no Brasil, volta ao início dos anos 1980, em uma Los Angeles de liberdade total para os jovens, a bordo de banheiras conversíveis, drogas e sessões triplas de cinema, bronzeados pelo sol e logo chamuscados pelas descobertas sexuais e mesmo violentas no horizonte. Não sei por que respiro nessas páginas uma liberdade que me faz lembrar 1993. Talvez eu saiba por que, mas isso derivaria em linhas em aparência reativas, e quero mais que os jovens de agora se ferrem como puder, me parece um erro pensar que isso é da alçada dos que não estão envolvidos. Prefiro decorar minha sala interior, ou aproveitar o interior de rodameios de madeira do Tabac.
- Devo ser o cliente mais novo. A média etária é seguramente setenta anos. E me sinto bem. Faz com que me lembre de queridos e falantes amigos de meu pai: Voltaire Schilling, Décio Freitas, Joaquim Felizardo, Cláudio Moreno, Deonísio da Silva, de antigas feiras do livro em que eu me punha a escutar os grandes, porque não saber escutar é o problema, tudo o que faz do narcisismo não uma circunstância que nos toca a todos, mas um modo de estar no mundo.
- Sei que este café está aqui graças a esses maestros, que o frequentam com empenho. Com sorte, um dia serei um deles.
- Haverá sempre necessidade de lugares em que se possa parar um pouco para ver o mundo através de uma vitrine, ao som das taças e das máquinas de expresso, uma ou outra tosse, alguns pigarros.
- Pena não poderem ver o vovô de gabardina que acaba de entrar com dois jornais debaixo do braço, bigode fino e pintado, um olhar salaz que faria corar os ativistas da palma da mão.
Buenos Aires, Hora:Zero — 41
Mordisco uma medialuna doce, tenra, é a manteiga, não estarei vivo para sempre
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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