1. Em muitos dos placares luminosos das paradas de ônibus da cidade, há uma disputa acirrada entre os cinquenta tons de rosa da Barbie, e o carrancudo ator que incorpora o físico Oppenheimer, ambos a estrear no próximo dia 20.
2. Em 1947, dois anos depois do sol humano ter calcinado Hiroshima e Nagasaki, no MIT, convidado a falar, Oppenheimer disse a certa altura que “os físicos tinham conhecido o pecado, e este é um conhecimento de que não podem se desprender”.
3. Sempre me pergunto o que é preciso para que tenhamos consciência do mal.
4. É o que me assombra diante da ideia da ciência dita pura, ou ainda, este remendo demasiado visível: código de ética na ciência.
5. Antes de 1947, os físicos faziam o quê? Modelos de movimentos uniformes nos quadros das escolas?
6. Recebo um buzinaço de um coletivo. Acho que parei muito próximo ao meio-fio para ver o anúncio do lançamento, para pensar na necessidade humana do check-check. Duas bombas. A segunda. A segunda é a que diz tudo sobre quem somos, independentemente de quais tenham sido os argumentos e o que a história registrou.
7. E depois disso curiosas abstrações como: quantos ônibus lotados teriam de cair sobre uma cidade para produzir o impacto de uma dessas bombas.
8. Do outro lado da rua, os rosas da Barbie. O laranja do cogumelo atômico, os rosas da boneca loira. Invenções de uma mesma espécie. Assim também o semáforo, a faixa de segurança, os cabos de luz, os vidros reluzentes dos saguões.
9. O couro da minha bolsa. Dentro dela o livro Conhecimento Proibido, de Roger Shattuck, um dos grandes textos do fim do século passado, que trouxe comigo para Buenos Aires.
10. Quando estou tomado de muitas dúvidas, em especial diante das crises de conhecimento que nunca se encerram, volto a ler alguns dos capítulos do livro. Uma vez que conhecemos alguma coisa a fundo, é possível desconhecer? É possível parar de descobrir alguma coisa, mesmo diante dos riscos de destruição?
11. Oppenheimer, anos depois, se posicionou terminantemente contra as bombas de hidrogênio, mil vezes mais potentes que as de Hiroshima, alegando o alto risco de sua existência para o planeta. Perdeu o cargo.
12. Pois como fechar uma senda que foi aberta por pés ainda cautelosos para os desapiedados que vêm e virão a avançar por ela?
13. E sinto que o celular — que por ora carrego no bolso e não para de apitar — um dia estará ligado às minhas veias, meus nervos, e tremo e me esfrio mais que a tarde de inverno.