- As fantasias são resistentes. Tendemos a diminuir seu papel sobre as memórias. Ademais o esquecimento. O esquecimento necessário para não empanar a aventura.
- Para cruzar o Prata, basta tomar o buque. E no filme interior, apesar das experiências de atraso, pessoas incapazes de entender um conceito de espera alinhada, longas paradas na migra, o que se vê é um mero cruzar, como entrar num ônibus ou num trem.
- Nada mais diferente. Pessoas correndo pelo corredor de embarque sem qualquer razão aparente. Trogloditas ouvindo alto a canção do Titanic. Preços em pesos uruguaios, a moeda mais cara do planeta. E não invente de ter uma irritação nos olhos. Um colírio em Colônia, desses de lágrima, sairá mais de cem contos.
- Ao menos desta vez, ninguém mareou. Em outra viagem, dois jovens emporcalharam o banheiro. As más línguas denunciaram uma noite anterior de fernets e choripanes, mas agradeci à elasticidade de minha bexiga.
- Mas se chega. E do lado uruguaio se pode ver o vulto dos prédios de Puerto Madero no horizonte, feito as ruínas do que um dia será uma antiga civilização como hoje é Colônia. Quando finalmente passamos com o carro, nos juramos percorrer as centenas de quilômetros e entrar por Fray Bentos, primeira fronteira terrestre entre Uruguai e Argentina.
- Cidade, aliás, que está em dois contos centrais do Borges: O Aleph e Funes, o memorioso.
- A verdade é que até a próxima viagem teremos esquecido das maldições, das pragas e resoluções e estaremos de novo nesta balsa glorificada.
- E tudo vale para encontrarmos minha irmã e minha sobrinha no meio do caminho entre Porto Alegre e Buenos Aires. Alguns dias de alegria familiar e diversões inesperadas.
- Como fazer um verdadeiro escândalo num supermercado a cada conversão de preços para reais. Apitamos mais do que os leitores de código de barras. Houve, creio, aprovação dos fregueses. Mas posso estar enganado.
- Um comerciante me explicou que são os dólares que inundaram a Banda Oriental nos últimos anos e supervalorizaram o peso. Apesar disso, apitamos também na sua loja.
- Ao retornarmos a Buenos Aires, depois de outra travessia demorada e tortuosa, celebramos o retorno à riqueza de quem recebe em flamejantes reais deste lado do rio.
Buenos Aires, Hora:Zero — 43
Pessoas correndo pelo corredor de embarque sem qualquer razão aparente. Trogloditas ouvindo alto a canção do Titanic. Preços em pesos uruguaios, a moeda mais cara do planeta
Pedro Gonzaga (1975) é tradutor, poeta e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com diversas publicações, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público jovem e adulto. Foi cronista dos jornais Zero Hora e Estado de São Paulo. Natural de Porto Alegre, vive atualmente em Buenos Aires, de onde escreve a coluna Buenos Aires, Hora:Zero.
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