1. Meu pai chegava tarde do trabalho quando éramos pequenos. Professor, ele cumpria aqueles três turnos de aula, condição que não parece ter melhorado para os que estão na ativa, quase quarenta anos depois.
2. Melhor parece, cada vez mais, uma condição que armamos para as máquinas, não para nós mesmos.
3. Lembro que por chegar à noite, cobrávamos sua ausência com pacotinhos de figurinhas, do álbum que estivesse na moda. Sua única barganha era a qualidade de nosso comportamento ao longo do dia, que ele a bem da verdade usava como escusa quando se esquecia ou não podia passar por uma banca.
4. Aqui há muitas bancas. Donde se depreende que um pai brasileiro tem uma margem maior de manobra.
5. O cheiro dos cromos. Doce e ácido. Depois a parte brilhosa dos papeis brancos que restavam ao se retirar as figurinhas — os dedos ainda sabem de sua maciez lisa e inútil —, acumulados sobre o tapete da sala até que fosse preciso juntá-los, para não incorrer no castigo que os reduziria.
6. Não havia nada para nos distrair da experiência de conferir as páginas e seus vazios à espera das figurinhas mais difíceis: uma aula de sacanagem sobre como o sistema funciona. A tevê podia estar ligada, mas sua circunstância de móvel, sua caixa amadeirada, dava-lhe a adequada invisibilidade, que os últimos modelos atuais tentam replicar fazendo as telas parecerem quadros.
7. Os álbuns tinham um peso quando estavam quase completos. A essa altura eu não conseguia dormir antes que o pai chegasse. As esperas da infância talvez sejam nosso único gosto permanente do que seja a eternidade.
8. Em algum momento, os pacotinhos foram substituídos pelos discos das bandas de rock brasileiro dos anos 1980. Ganhávamos um a cada duas semanas. Gastamos os sulcos de Nós vamos invadir sua praia, Cabeça Dinossauro, Legião Urbana II, e um do RPM com a capa amarela (pensei em buscar no Google, mas creio, cada vez mais, que é a precisão uma inimiga da verdadeira memória).
9. E nesses anos o pai com seu triplo turno, que não sendo pai, só consigo entender pelas vias do labor. Ou do afeto recebido nessas formas de presente.
10. Entenderemos tão pouco. Mas pode ser como uma música. Uma canção daquelas que sempre ouvimos, mesmo sem alcançarmos um entendimento racional.
11. O raciocínio lógico e comparativo, a busca por uma compreensão social e cultural, há uma boa chance de que não passem de uma forma equivocada de entender a vida.
12. Tudo aquilo que a envelhece. Uma parte fundamental está à margem do tempo e dos discursos. Em outro país, em outra cidade, quando meu pai completa 76 anos, esta é a parte que importa.
Foto: do autor, banca de revistas em Buenos Aires.