1. Para quem gosta de eleições, a Argentina é um serviço completo. Te dão até entrada antes dos principais. Não necessariamente tragável.
2. E depois analistas gritando na tevê, o câmbio com variações ainda mais frenéticas do que o de costume, enquanto se desenha um desfecho imprevisível para 22 de outubro, data do primeiro turno.
3. Há quatro eleições sem votar (todas fora de meu colégio eleitoral — inclusive na última vez já aqui em Buenos Aires), creio ter adquirido uma das vantagens do apátrida, quando não do pária (porque assim me veem muitos conhecidos inflamados pelo moralismo político): eu observo, sem conseguir pertencer. Converso com as pessoas, tento analisar, uma parte que seja, da fúria dos discursos, que nunca é apenas fúria verbal. Ninguém escuta. E não escutar é sempre o primeiro passo para aquele pesadelo hobbesiano da guerra universal.
4. Quem escuta, reconhece padrões discursivos, intenções que esses padrões buscam conformar. O treinamento de um poeta é reconhecer os padrões que condicionam e reduzem a emoção, a sensibilidade, as diferenças a quase nada. E lutar contra isso. Lutar para que haja uma pluralidade discursiva, análoga às variegadas circunstâncias que constituem uma criatura humana. Resistir às frases prontas, aos clichês, aos lemas, a tudo aquilo que é inimigo da poesia, quase sempre as pedras de toque da política atual.
5. Fala-se muito dos riscos criados pelas redes à democracia, pelo modo como é fácil excluir, cancelar, acorrentar-se a uma lista de disparo via WhatsApp. Passa que os políticos já haviam virtualizado seus eleitores antes, com discursos montados em gabinetes de marketing. As fake news não são criações da era digital. A internet é o meio que potencializa sua permanência, em replicações infinitas num circuito fechado, e por fechado eficaz em sua simulação de democracia.
6. E os analistas seguem gritando na tevê, mas estão mutados. Eu conheço também seus padrões. Vão atrás de culpados. Vão acusar as pessoas de colocar em risco seus direitos ao votar no vencedor das prévias — um tipo que parece um ator de filme vitoriano da BBC depois do apocalipse. O ponto é que esse tipo de acusação já revelou seu fracasso em muitas oportunidades nos últimos anos.
7. As coisas não vão bem. Admiro quem luta, na prática. Admiro menos quem observa, como eu. Não guardo respeito algum por quem discursa e não busca concórdia (mesmo sem acordo), discursa pelo benefício de um prestígio entre seus pares.
8. Enquanto isso, a truculência cresce com uma forma de discursar que se assemelha ao desespero (por isso talvez seduza aos desesperados), mas cujo objetivo é explorar o desespero alheio. E a desesperança.
9. Ponho para tocar a canção The future, do Leonard Cohen. Em 1992 ele parece ter visto o que nos esperava e que a cada passo está mais próximo de se confirmar.
Foto da Capa: Javier Milei, candidato da extrema direita foi o mais votado nas eleições primárias argentinas