1. Em seu novo livro de ensaios, Homo irrealis, André Aciman consegue trazer uma nota a mais para a definição de um sentimento tão corrente em certas almas, a nostalgia. Para ele a real nostalgia não se a sente ao anelarmos um lugar desde a distância de outro lugar, mas sim quando sentimos nostalgia de Porto Alegre, por exemplo, em Porto Alegre.
2. Desejar onde estamos aquilo que a cidade foi, poderia ter sido, ou não foi nunca.
3. Os tempos irreais: uma parte fantasia, uma parte memória, uma parte nada.
4. Sentir nostalgia enquanto ainda estamos vivendo uma experiência, projetar, um quê melancólicos, o tempo em que já não teremos o que aqui ainda não está perdido.
5. Há uma canção do Ritchie que manobra à perfeição essa experiência, oferecendo uma projeção reversa, a partir de um futuro desenhado para amplificar a perda do passado. Um casal viveu uma experiência amorosa no apartamento que o sujeito lírico ora habita, sozinho, enquanto tenta recuperá-la da distância solitária dos anos, quando ela não é mais que um holograma. A canção se chama Voo de coração, cuja letra suponho seja de Bernardo Vilhena, também dá título a um dos álbuns de maior sucesso dos anos 1980 no Brasil, injustamente lembrado apenas por Menina Veneno.
6. Na canção, o sujeito lírico escreve “memórias num velho computador”, item que era então uma novidade para 1982, ou seja, a composição tem por efeito criar um futuro agônico para quem a escutava então, um mundo em que amores sobreviverão de maneira irreal “no canto da sala”.
7. A voz de Ritchie, com seu melancólico agudo, numa sobredose de emoção — típica de alguns bridges oitentistas — consagra a nostalgia a que Aciman se refere: A nostalgia mais intensa se dá num deslocamento de tempo, não de lugar. Tem a ver com o que vivemos ou podíamos ter vivido, enquanto passamos nossas existências no que pudemos viver num espaço específico.
8. Mas alguma parte do coração não aceita. E é aí que Voo de coração se torna assombrosa. Mais de quarenta anos depois, chegamos ao tempo fabulado pela canção. E agora sua nostalgia não é mais reversa. É direta. E isso parece torná-la mais pungente. Os computadores estão velhos, os hologramas piscam e sorriem, e o amor só se mantém nos minutos suspensos entre os riffes e solos de guitarra que abrem e fecham a música.
9. Estar preso ao perdido. A nostalgia é estar sentado num estádio muito tempo depois que o espetáculo terminou, ao ar da madrugada, logo mais vai ser dia, mas a boca um quê escancarada, os olhos cansados, esperam no mesmo lugar em que tudo foi possível.
Foto da Capa: Ritchie Oficial / Divulgação