1. Na tevê, o noticiário aponta a manchete em alarmantes garrafais: “Longa é a tarde, longa é a vida.” Ao que uma apresentadora reage dizendo, “de tristes flores, longa ferida, longa é a dor do pecador, querida”. E chamam um repórter de rua, que oferece seu testemunho: “longo é o beijo do amador, bandida”. E a passante, com suas sacolas e seu sufoco: “belo é o jovem mergulhador na ida”.
2. Um mundo em que a cacofonia de políticos, ativistas, âncoras levianos, mentores de televisão passasse por um filtro Tom Jobim.
3. “E ela canta e ela dança, menina, o samba da Marilu, Marilu, Marilu”.
4. Ou Piazzolla.
5. Em vez das pesquisas de intenção de voto, Las quatro estaciones porteñas.
6. Porque o já tentado, deu em nada. Cinquenta anos depredando a cultura, a sensibilidade, cultuando a competência dos financistas e como estamos?
7. Charles Harrison, no artigo Os méritos da incompetência, talvez aponte uma saída: “A arte deve incorporar alguma forma de resistência aos regimes dominantes da cultura — alguma forma de incompetência.” Contra a cultura da performance: Jobim. Contra a feiura dos debates inermes: Piazzolla. Contra a velocidade do mundo: João Gilberto.
8. O noticiário segue e o comentarista esportivo, só por hoje, não gritará tontices que qualquer espectador de futebol é capaz de alcançar. (Todos os comentaristas esportivos, depois de um tempo, são um tipo grisalho de terno e cabelo batido, a glorificar suas análises com platitudes de cards motivacionais.)
9. Dessa vez, no entanto, ele se cala e seu silêncio é superior em profundidade e sabedoria ao de qualquer tecla mute já utilizada.
10. E depois o analista econômico canta: “Dinheiro na mão é vendaval”.
11. E garota do tempo, redimida dos cinco anos em que espera uma promoção, quem poderia supor, não diz el niño, mas sim: “Luz do sol, que a folha traga e traduz. Em verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz.”
12. E a correspondente em Roma, solene apenas na armação de acetato, para que também se saiba que a vida é brega e feliz, ataca um “volare, ô-ô, cantare, ô-ô-ô-ô”.
13. E pelo tempo desta breve fantasia sabemos, ao menos, o que a poesia pode fazer pelo mundo.
*Pedro Gonzaga está em férias. Este texto foi publicado originalmente aqui em 30/08/2023.
Foto da Capa: Mauricio Espitia Urea / Pexels