1. A medialuna parecia boa, não era. O brilho das volutas é um promissor indicativo, mas há uma capital diferença de textura que só se a capta na mordida: a calda que se volve crocante, e a calda que é uma decepção empapada.
2. Aqui sobre a mesa estava o segundo caso. E pensava nisso quando o senhor da mesa ao lado me chamou.
3. Son malas, no?
4. Ele tinha duas à sua frente. Disse que vinha todos os dias a este café, que havia vinte anos lhe serviam a mesma guloseima pegajosa. E por que ele seguia vindo? Não soube responder. Eis um mistério portenho: biroscas a que um jamais voltaria estão sempre cheias.
5. E o que me parecem as eleições, perguntou. Por sorte não voto, nem lá nem aqui.
6. Esperei alguma reprimenda, mas ele só assentiu, o telefone celular nas mãos. Logo passou a me falar de um irmão que, na semana passada, tinha se mudado para o sul da Argentina, quase no fim do mundo. Contou que, depois de enviuvar, o irmão reencontrou uma colega de faculdade por quem fora apaixonado e que agora morava em Trelew, para lá do Chubut, também viúva, e que em menos de um mês resolveu tentar o que em quarenta anos não havia conseguido.
7. Reencontraram-se pelo Facebook, puseram-se em rota de colisão. Ele estaria aqui dividindo a mesa comigo, me disse, como fazíamos às terças. Daqui a pouco me fará uma chamada.
8. Dei uma mordiscada na medialuna babada, era realmente má. Disse-lhe que havia qualquer coisa de romântica em ir atrás de alguém no fim do mundo.
9. Por qué no, eh?
10. Logo ele se foi e fiquei com a história. García Marquez não inventou este tema em seu romance O amor nos tempos do cólera. Todos conhecemos alguma versão real desses encontros. Quem sabe por isso o livro funcione tão bem. Há que haver um lugar no fim do mundo para aqueles que não deixaram um amor morrer, apesar das circunstâncias.
11. O garçom se aproxima e me pergunta se acreditei no que o velho me contou. É ele o personagem da história, compreendeu? A ligação que ele espera é a dela, pois não teve coragem de ir quando foi a hora.
12. Pago a conta, deixo a propina, fico ainda um tempo sentado junto à janela, como num daqueles filmes com final aberto, em que a gente não tem coragem de ir pra casa.
13. Entendo ao menos porque num lugar como este as medialunas não precisam ser decentes.