- Andamos desatentos há duas décadas.
- Brumosos, andamos como jogadores de uma extensa partida de canastra na praia, indecisos entre deixar a mesa acumular ou comprá-la, porque a essa altura talvez fosse já hora de bater, mas nos arde o desperdício de não termos um jogo limpo com a oferta robusta daquele monte, ah, ali estão o melhor ouro, as melhores copas, e a noite avança deliciosa e modorrenta, de um modo mais gentil que o tempo geral avança. vinte anos de um novo século.
- Até o que parece ou se vende como inédito tem um padrão centenário, nas artes, nos costumes, andamos em círculos que se aceleram, mas que de algum modo parecem uma lenta e tediosa repetição.
- Andamos, impacientes, desajeitados, embuchando-nos de postagens a granel, enquanto apenas nossos olhos permanecem os mesmos porque já nasceram velhos.
- Notamos isso em nossas fotos de crianças, os mesmos olhos, e, por causa disso, graças a isso, somos capazes de reconhecer nossos medos, nossos espantos, e também o brilho de quando andamos por uma vida inesperadamente boa, como nas brincadeiras, jamais de todo canceladas no coração, porque há sempre coisas a descobrir, detalhes nunca percebidos numa canção tantas vezes ouvida, conversas a que voltamos, agora capazes, por fim de entendê-las, arqueólogos amadores de nós mesmos.
- Mas também, por consequência, andamos mais desatentos à realidade, medidora a conta-gotas de nossa ruína, imposta invariavelmente pela graciosa chegada das flores, bem-vinda depois de tanta úmida calamidade, num paradoxo funesto, a emporcalhar a primavera, mas não entendemos bem por quê, entendemos cada vez menos, mareados pelo movimento de um carrossel, por um futuro que se vê somente quando olhamos para trás.
- E às vezes acordamos raivosos e decididos, cedemos às palavras de ordem, mas por serem tão mais caducas do que nós, logo só nos resta uma irritação, sucedida por um cansaço, e ainda assim andamos, o que talvez explique, quero eu, nossa última tolerância.
- Ou quem sabe isso já seja a antessala da desatenção, estar em alerta me desgasta, pensar em termos abstratos é beber a água mais fria e mais solitária, e não vale a pena se incompatibilizar com as soluções pré-aquecíveis no microondas, a originalidade teve seu momento, quem sabe, e hoje andamos às margens de nos tornarmos um artefato obsoleto:
- As saias das melindrosas, um chapéu-coco, um castão de prata. Andamos quase anáguas.
- Mas não estamos nus. Andamos com a desatenção. A desatenção é nosso pincenê, nossa curiosíssima relíquia às gerações futuras, que nos farão o favor de não terem sequer um brique para expô-la, e de tal maneira — livre da poeira e da ferrugem —, a desatenção passará mansamente a seu próximo estágio que é o esquecimento.