- Era o tempo em que se podia ter da vida a parte gordurosa da vida, em ambientes às margens do insalubre.
- Tempo de medos triviais, como azia e má digestão.
- Desde que os instrumentos estivessem a salvo, o resto era negociável. Acumulávamos as caixas pretas junto ao balcão da lanchonete, estojos para estranhas formas de armas: arredondadas, cônicas, cilíndricas.
- Jamais me habituo à maravilha de saber que as coisas estão sempre seguras no país da memória.
- O dono da birosca nos recebia com animação. As criaturas da noite, salvo os donos de bares, gostam de músicos, talvez desde as festas provençais: sem músicos tudo é um pouco mais triste e, por contraditório que pareça, menos silencioso. A música organiza o espaço com suas células rítmicas, seus tecidos harmônicos e seus fios melódicos, domestica o silêncio e a algazarra, emoldura o tempo por gloriosos minutos, como em Not dark yet, de Bob Dylan.
- Animado e de uma cortesia ímpar, o dono nunca pediu que tocássemos, sabia que ali chegávamos depois dos shows, ainda que uma ou outra vez tenhamos sacado os instrumentos para alguma fanfarra. Não era o normal. Ao nos ver chegar, colocava numa rádio de flashbacks. E depois preparava seu xis especial, um daqueles quitutes que o passar dos anos e a medicina nos vetam de todo, embora sigam sendo prensados em destemidas tabernas.
- Certa noite, um carro travou quase junto à mesa onde estávamos. Uma mulher abriu a porta do motorista e saiu aos gritos. Começou a esmurrar a lataria do capô, chamando alguém que não estava ali de canalha, verme, desgraçado.
- Que não pareça falta de simpatia, mas cenas assim eram comuns. A prudência indica manter a normalidade das ações. Logo ela se abancou numa cadeira e ordenou a bebida mais forte e continuou a desancar o pilantra.
- Era uma época em que se tomava menos partido, não havia redes sociais.
- A verdade está lá fora, dizia uma série dos nossos anos de formação.
- Toda criatura humana precisa apenas de uma canção certa. Em Porto Alegre, na Terra inteira, antes que seja tarde.
- Em silêncio nos levantamos, abrimos os estojos e, apesar da pança cheia, atacamos um tema de dor de cotovelo sumamente infalível.
- Naquela noite nem a vizinhança reclamou do barulho.