- Anos atrás, numa entrevista que sequer sei se foi publicada, frustrei o repórter ao revelar que meus poemas eram escritos no bloco de notas do celular.
- Em outra vida teria me solidarizado com seu desencanto romântico, que supõe penas de ave e um quarto mal iluminado para o poeta.
- Entendo também a fantasia do exotismo, a busca por alguma excentricidade na composição. De fato, seria melhor para todos os envolvidos que eu ainda usasse ao menos uma caneta-tinteiro.
- Ele trazia um bloco com perguntas pré-formuladas, e pude ver um recobrar de sua animação quando passou ao próximo tópico: Bukowski.
- Durante algum tempo, fui o tradutor de Bukowski no Brasil. Foram sete livros, e ainda me parece bem digna a tradução do volume de poemas O amor é um cão dos diabos.
- Como é sua relação com o universo do velho safado?
- Pude ver o título de sua matéria chamativa: O Bukowski gordo de Porto Alegre. Fechei-me em copas.
- Por que não o ajudei? Acabaríamos de qualquer jeito na era da pós-verdade. Por que não dar-me a mim mesmo uma outra vida, como no conto O possível Baldi, de Onetti? Custava-me ter-lhe dito que as traduções eram rabiscadas em guardanapos em bares do centro de Porto Alegre, cercado por criaturas da noite, após um quinto uísque?
- Mas eu então acreditava que um escritor devia dar respostas simples, diretas, didáticas, e, mais uma vez, naufraguei a entrevista dizendo que trabalhava quase sempre pela manhã, olhos no computador ou nas fachadas da vizinhança, mateando ou tomando café.
- Nenhuma aventura, nenhum desgarro, nenhuma ruína.
- Os olhos postos no bloco mais uma vez, o pobre repórter parecia perdido. É preciso considerar que a entrevista ocorreu há uma década. Lá não havia posicionamentos políticos e sociais a explorar, engajamentos fundamentais em nome da democracia. Era construir um perfil contundente, ao modelo do novo jornalismo, ou falar de literatura.
- Seus dedos compridos percorreram inúmeras folhas, quem sabe atrás de algo para requentar de outra entrevista. A um erguer de sobrancelhas, ele disparou:
- Você tem algum inimigo literário?
- Tive, respondi, mas o emparedei. Era uma boa sacada, mas eu a aniquilei com minha suposta erudição.
- Espero que o tempo tenha feito de mim um melhor entrevistado. Em todo caso, tratei de conjurar-me inimigos portenhos, charutos cubanos, uma bengala com punhal oculto, uma pena e papeis de seda importados do Japão.
Foto da Capa: Chales Bukovski