1. A contagem de corpos aumenta. Nunca amortecidos pelos números, os apresentadores mantêm uma estamina análoga à do locutor do velho bingo em Mariluz, que cantava as pedras, com inquebrantável empolgação, até o fim da noite.
- É um bingo, só que estamos sem cartelas.
- Os comentaristas de quaisquer assuntos agora se debruçam sobre este. Depois é a hora de chamar os profetas das redes e então os acadêmicos de auditório.
- A realidade segue intacta.
- Novas palavras para a mente, mapas animados, infográficos, mas são outras imagens as mais eloquentes. A repetição entre os gols da rodada deveria abrandá-las, mas elas seguem queimando, porque o horror é um antiga glândula humana, que pode até hibernar, mas nunca se necrosa.
- E a necrofilia. Real e virtual. A celebração da violência com discursos refinados. O tesão da violência quando esta recai sobre os merecedores.
- A papagaiada infinita enquanto as imagens do horror, ao fundo, congeladas, permanecem. Este é um lugar em que as palavras nomeiam, mas não tocam nada.
- Governantes aparecem. Entrevistas. Resoluções que se acumulam feito louça, feito livros que esperam pelo pó, bailarino e preguiçoso, que haverá de recobrir tudo.
- Mas os comentaristas vão encontrar uma solução. Haverá uma solução, e logo suas bocas estão cheias de tempos futuros, de feitos esperançosos, ou, ao contrário, de explicações passadas, carregadas de trevas e números de outras barbáries também passadas, que só os ajudam a se lambuzar em suas convicções. Comentaristas adoram malabarismos adversativos, complexidades rasas de ocasião.
- Subjaz uma adversativa, contudo, sobre ou atrás de suas bancadas. Não são a que eles usam para trazer ponderação. São as imagens. Imagens que, se realmente vistas, convocam a uma dor que não se falsifica com raciocínios autoindulgentes.
- E no fim do segmento já creem que suas respostas são a garantia de terem vencido as perguntas do agora. Estamos todos mais conscientes, dizem. É quase como aquele todo mundo ganhou das gincanas do colégio.
- No silêncio da manhã, enquanto a planta na sacada brota para ninguém, não sei o que fazer com a tristeza que sinto. Talvez por nova, talvez por repetida, talvez porque aqui, sem saber sequer o que julgava compreender antes, eu tenha de pensar em cada vida tomada, despedaçada, consumida.
- E eu não tenho respostas.
- Mas os comentaristas têm, enquanto segue a eufórica contagem de corpos.