- O dono do kiosko da esquina me pergunta se é possível ir de carro ao Rio de Janeiro, ele quer ver a final da libertadores no Maracanã. Depois de algumas rotas, que pelos meus cálculos envolveriam três dias de viagem, se ele pensa em dormir, pergunto-lhe se já comprou o ingresso. Ele me diz que iria para acompanhar a partida de fora do estádio. Desejo-lhe boa sorte, levando minha coca light embaixo do braço.
- Enormes filas para abastecer circundam os postos da cidade. Submetido a uma delas, como consolo, penso que entraria em qualquer fila no Brasil para pagar dois reais o litro da gasolina. É evidente que se trata de uma bomba-relógio. Curioso é pensar que, ao que tudo indica, quem a armou terá de desarmá-la.
- No noticiário da tevê, aparece uma camionete que caiu num buraco na rua enquanto buscava estacionar. Uma cratera, a bem da verdade, sem qualquer sinalização. A imagem mostrava a traseira exposta do veículo, os dois escapamentos como um estranho órgão sexual bifurcado, inúteis em sua apregoada potência. Os passageiros saíram pelo teto solar. Enquanto a câmera mostrava imagens do interior da camionete, uma peruca loira cintilou no banco traseiro. Parecia um pequinês que tivesse sido abandonado às pressas.
- Uma coruja deu para se manifestar um pouco antes das seis da manhã, em algum lugar perto de nossa janela. Já tentei avistá-la, mas talvez se esconda no telhado. Ao contrário de muita gente, que sente qualquer coisa de mau agouro em seus piados, para mim tem um apelo anacrônico, exótico, como se um outro tempo, mais primitivo, pudesse coexistir com os ônibus e os carros que nunca sossegam na Avenida Las Heras.
- Faço uma busca por sons de corujas no youtube. Nada produtivo, além de algum divertimento, que termina por atrasar o que escrevo. Resolvo tentar alguma coisa no google, e descubro que há uma espécie austral, orelhuda, que aqui se chama Ñacurutú, Jacurutu no Brasil. Não sei se é nossa coruja, mas me dou por satisfeito.
- Dar uma forma, um rosto ao invisível é uma das mais constantes características humanas.
- Vale para a política e para as ideologias, para o amor e para o ódio que precisamos abraçar. Por sorte, alimenta também nossa fantasia, essa potência ameaçada por tantas imagens prontas. A burra sede das imagens prontas. Sede tão cegante, que delegamos às máquinas a antifantasia de tranquilizadoras imagens artificiais.
- O que em nós precisa tanto ter certeza? A instabilidade se tornou de tal modo intolerável que é preciso catalogá-la e saná-la antes que se apresente como um risco à nossa ilusão de coerência?
- Por mais imagens como a peruca loira no banco traseiro da camionete. A imagem que acende a imaginação. Como toda imagem redentora.
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