1. Eram cafés em que resolvíamos todas as pautas da semana em meia hora, porque a alegria da amizade nos permitia saltos e conclusões sem avanços lógicos, e contra-argumentos figadais, provocações solertes, debochadas, e uma liberdade para dizer tontices que só quem entende que nosso tempo sobre esta pedra girante é curto demais para a seriedade dos bem-pensantes articulistas do mundo, cuja única forma de simpatia se estende aos que se lhes parecem, sabe abraçar.
2. Quando me perguntam do que sinto falta vivendo na Argentina há quase dois anos, digo que são dos amigos. Já temos uma panela de pressão para o feijão, as outras coisas da dieta da alegria aqui são melhores: queijos, carne, vinhos. As frutas são um pouco tristes, mas compensam a perda geral com as rojas: mirtilos, amoras, cerejas, morangos. Fato que as saladas não convencem. Mas não quero falar da dieta da tristeza.
3. Mas os amigos. E o pavoroso monopólio da Aerolineas no trecho para Porto Alegre, que quase me faz apoiar o lunático Milei no seu agora negado plano de venda de órgãos: Com um rinzinho, quantas idas e vindas?
4. As variações Goldberg de Bach são a coisa mais próxima do ouro se o ouro pudesse soar.
5. Tese que lançaria aos amigos no hipotético café, que o grupo de Whats simula, emula, imita, mas não entrega. Consolamo-nos com o melhor que nada. Assim o mundo tem vivido há décadas. É melhor que nada que haja esta democracia, este ensino, esta cultura, esta livraria que mais parece uma papelaria com luzes brancas de flúor.
6. Aqui, por sorte, apesar de tantos anos difíceis, de pobreza e miséria crescente para os argentinos, ainda há livrarias revestidas de madeira e livros.
7. Que os amigos safados não vêm visitar. Eu entendo. Aerolineas. Falta de tempo. Empregos escorchantes. Não poder vender um rim. Eu entendo. Mas não aceito.
8. Já preferi o Glenn Gould jovem nas variações Goldberg. Hoje prefiro o velho. De lá pra cá, a ânsia de nossos tempos pôs a nu o tanto de ânsia que havia naquela execução primorosa da juventude. Apesar de toda a música lounge, a versão mais lenta sofreu menos.
9. No café sine die, eu diria: a música lounge está para a música assim como o courino está para o couro: parece couro à primeira vista, mas a pele sabe a diferença.
10. Venham, amigos ingratos. Já separei a Confitería Ideal para nosso encontro. Tenham um pingo de vergonha na cara.
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