- A madrugada tem duas pontas, uma nítida, outra mais difusa.
- Nosso idioma, como o espanhol, guarda a ideia de que há um período chamado madrugada, cuja extensão é marcada acrescendo um “da manhã” às horas que a compõem, feito um complemento indispensável. Reparem. Te encontro lá às duas. Excetuados os noctívagos incuráveis, ou em um contexto específico, entendemos o combinado para depois da hora do almoço.
- A ponta nítida começa a uma da manhã e vai até às cinco, concedamos seis. Notem que sete, oito e nove, podem até levar o complemento, mas não guardam o mesmo valor, porque a própria aparição do sol limita naturalmente a madrugada, ou seja, a manhã da madrugada é por natureza escura, acaba no alvorecer.
- Se eu digo, por exemplo, hoje acordei às sete, está bem, está tudo dito. Mas em “hoje acordei às cinco” parece faltar alguma coisa. Claro. É o justo pleonasmo, é a necessária hipérbole. Hoje acordei às cinco da manhã. Inegável admitir que nos falta também uma figura de linguagem específica para marcar o quê de vaidade do complemento. Porque há algo que se ufana nesse “da manhã”. Enquanto vocês dormem, estamos despertos.
- E se chamássemos a figura de vanitato? Comprei esta bolsa em Paris. Vanitato de lugar. Autografei o livro. Vanitato de autoridade.
- Pensamentos esdrúxulos da madrugada.
- Por certo você também os têm. Olhando para o teto, enquanto leitosamente se espalha a luz da manhã, e cogitamos tolices como o vanitato, se a chuva avançará sobre o Prata, vossas dúvidas, mas em geral tempero as minhas com o que aprendi das pessoas que a sorte me trouxe.
- Proteja-se dos imbecis, dizia o velho Dacanal nas aulas de latim: Acima de tudo não seja o maior deles.
- Outras vezes me lembro do futuro (e tomara longínquo) epitáfio do Cláudio Moreno, que em sala ele fazia questão de nos repetir: Lutou contra a ignorância e foi vencido.
- Do que me disse um saxofonista chamado Malaquias, ao me ouvir tocar: Sopre forte. É um conselho que ainda uso muito nas aulas de escrita. Soprar forte não tem a ver com volume. Soprar forte é tirar um som retumbante das coisas.
- E me lembro das palavras caridosas da professora Nayr Tesser ao ler meus primeiros contos.
- E das palavras que o amor disse e retirou, mas sobretudo das palavras novas que o amor usa ao revir, que existem e perduram como um milagre.
- Das palavras dignas de minha mãe, de meu pai. Dos meus avós, dos meus irmãos. Das palavras francas dos amigos ao longo da viagem. E daquelas daqueles que o tempo tomou.
- Minhas criaturas vivas às cinco da manhã, a me acompanhar enquanto não chega o dia ativo e banal em sua economia de hora apenas.
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