- A energia das crianças no pátio aos fundos do apartamento não é contagiante, como nos comerciais oitenteiros — eu me arrasto igual para apanhar o café —, mas é surpreendente: são corpos como dínamos, são o futuro ruidoso, ainda não arranzinzado.
- Em espanhol os filhotes todos são cachorros. Gosto da ideia de cachorros de gatos. E ao menos entre essas duas espécies, suponho também entre tantas mais, há essa energia besta e desenfreada de las criaturas humanas, convertida em cabriolas e momentos instagramáveis, em centelhas de vida redentora.
- Na escola dos fundos, canta-se o hino ao início do turno da manhã. Excetuadas as partidas de futebol, que também não apresentam as condições adequadas para os estudos dos signos pátrios, nunca tinha ouvido o hino argentino. Diante da repetição compulsória, para as crianças e para mim (e me surpreende como elas aqui não avacalham a execução — lembro das muitas reprimendas que sofríamos no colégio por isso), noto que falta ao hino a efusividade e os salamaleques melódicos do nosso, e me parece raro que em meio à primeira parte da letra, haja um brado três vezes repetidos de libertad.
- O efeito das atualizações históricas transforma quase tudo em um jingle político.
- O curioso é que os prédios da vizinhança me impedem de ver a escola em si. Parece um efeito sonoro de crianças, uma série de samplers:
5.1 Crianças chegando ao colégio
5.2 Crianças cantando o hino
5.3 Crianças na hora do recreio
5.4 Crianças jogando queimada
- Suponho que meu trabalho também lhes seja invisível. Invisível e silencioso, composto em outro idioma.
- Mas a isso estou acostumado. Já era silencioso no Brasil. E talvez ainda mais silencioso para adultos.
- Constatar e reclamar são ações humanas que deveriam andar mais apartadas.
- No hino argentino se usa o vós clássico. No modo imperativo, os verbos ganham o “d” no final. Certa vez, assistindo a uma missa em Madri, senti o peso da palavra divina quando o padre anunciou: Tomad y bebed el Cuerpo y la Sangre de Jesucristo.
- Na versão portenha havia que sacar esse “d”. Em uma cúmbia com arranjo do Bizarrap se ouviria “tomá y bebé, pibe, el Cuerpo (…)”.
- Antes que me ocorra aquele Gonzaguinha, ora para minha única vergonha (é difícil escrever a palavra feliz sem um arrependimento estético, sobretudo quando rima com aprendiz), confesso que esqueci o que tinha como ideia para esta crônica antes do hino deste país ao sul do mundo desconhecer minhas janelas.
- Nada. Da perspectiva das crianças, o que importa são as férias chegantes.