1. As histórias de fantasmas, como as de terror, sempre me pareceram um pouco bobas em relação aos reais fantasmas, aos que assombram-nos em determinados gestos, em determinadas situações em que agimos como nossos avós ou outros tantos que já não estão.
2. O medo de sobreviver apenas como um cacoete nos que ficam, um reflexo condicionado.
3. Há que querer ter medo de ectoplasmas e outros efeitos hollywoodianos.
4. A diferença entre os fantasmas das histórias e os de nossa interioridade é a diferença entre o susto e o espanto.
5. Por isso, continuo admirando muitos dos contos do Poe. Ainda que tenha seus momentos de terror adolescente, ele conseguiu criar algumas das fantasmagorias mais intensas já escritas, como em O coração delator, O poço e o pêndulo, O gato preto.
6. Tudo para dizer que o fantasma de meu avô materno veio me visitar no auge do calor portenho.
7. Entre muitas de suas manias, cismas, cláusulas pétreas — não sei bem como chamar —, estava a de que as chaves da casa eram o bem mais precioso a ser vigiado por alguém. Perdê-las equivalia a uma espécie de tifo moral, de praga fatal para o caráter. Era comum ver meu avô com as chaves entre os dedos, ou vasculhando os bolsos por garantia.
8. Quantas vezes ao longo dos dias busco o metal redentor de minha serventia na bolsa, no fundo das algibeiras.
9. Até não encontrá-las ao voltar da Librería Norte. Talvez tenha me perdido demasiado tempo em suas prateleiras de poesia, as melhores do hemisfério sul. Não sei. Foi quando percebi um oco na costura do bolso da calça, um oco demoníaco.
10. Tentei superar o evento com humor, não havia grande dano porque a Tainá estava com a outra chave. Mas não consegui. Revieram-me as muitas lições do meu avô sobre o tema.
11. E ele estava vivo. Não era um gasparzinho boboca. Era um espírito denunciador, que não pode ser exorcizado.
12. Vexei-me no chaveiro. Humilhou-me sair depois com o jogo copiado. Creio que, às vezes, quando esta na fechadura, o jogo parece se mover em lenta e inequívoca censura.
13. Queria culpar o verão, pela distração, pelo suor asqueroso que promove, mas o verão não abre buracos nas calças.
14. Pergunto-me se meu avô chegou a perder alguma chave. Como tantas coisas que nunca perguntamos ao seu devido tempo, esta matéria oculta se converte no próprio alimento dos fantasmas. E uma vez ou outra no alimento da escrita.