- Gosto de pensar — o que não significa ter razão — que a escrita literária, ou seja, artística, tem muito a ver com tocar um instrumento: sem desenvolver certas técnicas (mesmo que para alguns isso aconteça de modo mais intuitivo) é pouco provável que nos agrade o resultado.
- E claro, aos outros também.
- Um instrumento de sopro. Um trompete. Sem a adequada técnica, vai-se de um Lee Morgan a um vendedor de picolé.
- É difícil ver a escrita assim. Afinal, trata-se de uma ferramenta de uso cotidiano, com os mais variados fins práticos, na qual fomos treinados desde os seis anos de idade.
- E talvez aí resida o problema de tanta gente que não se sente bem com o modo como escreve. Deram-nos um trompete, mas não o prazer do fraseado, da improvisação; do vibrato, que ajuda a controlar os sentimentos; das harmonias, que acalentam a razão; da surdina, que tantas nuances sabe produzir com sua textura esfumaçada.
- Uma sensaboria. Toda uma educação para fazer da escrita um aborrecimento. Redações e mais redações sobre problemas que ninguém resolverá, em que se cobram com rigor elementos gramaticais e sintáticos (por vezes uma forma de coação), a aplicação de fórmulas de sucesso, como:
— Sendo tais medidas aplicadas pela sociedade, o Brasil será um dia um país mais justo para todos.
— Hodiernamente (quem ensina essas barbaridades?), a indústria farmacêutica tem tratado a saúde como um mercado lucrativo.
— É mister dar aos índios o controle de suas terras, para que possam viver em liberdade junto à natureza.
- E por aí vai. Fora o incentivo a um palavrório que ninguém utiliza em situações normais de comunicação, à exceção de certos membros do poder judiciário, que seguramente não querem se fazer entender.
- Quando fui professor de literatura no pré-vestibular e no colégio, muitas vezes os alunos me traziam redações para eu ler, para dar palpites literários, suponho. E lá estavam o hodiernamente, o destarte, o por conseguinte, o é mister.
- Certa vez fui a uma formatura em que a oradora, talvez saudosa dos recursos de uma escrita morta, usava como expressão de apoio para exortar seus colegas a serem melhores profissionais o é mister. E ela bradava: É míster que vocês, é míster que o país, é míster que a ética. Até que não me contive e gritei: É mister.
- Me arrependo, mas não muito. Porque era um trompete desafinado. Não de alguém sem nenhum ouvido, se voltamos à imagem da música. Não lhe treinaram o ouvido. Deram-lhe uma muleta, que ela sequer sabia pronunciar. Não houve, talvez senão pela leitura de alguns textos literários, qualquer convite, qualquer condução para que ela pudesse saborear este idioma tão melodioso que é o português.
- É uma desgraça em duas faces. Lê-se muito pouca literatura (e ainda menos a literatura mais radical, mais criativa, a poesia), e não há — exceções preservadas — nenhum pensamento, nenhum ensinamento sobre os recursos artísticos que uma frase, um parágrafo podem ter, capazes de romper a monotonia, as frases feitas, os chavões do tempo.
- Como já disse alhures (eta minhas redações), não é que a IA possa escrever obras literárias. Ela é capaz de escrever, por ora, obras que simulam o deserto de criatividade que vive nossa escrita, e disso não escapa a literatura.
- Onde há mais programações do que instrumentos orgânicos, surpreende que boa parte das músicas seja um constante looping, tanto de ideias quanto de formas?
- O prazer da escrita, como o de qualquer arte, reside no conjunto de erros e acertos a que estamos expostos quando pensamos em como fazer, quando lutamos contra, perdemos e adquirimos novas técnicas. E é neste lugar também que vislumbramos o milagre — é uma faísca —, que corusca no choque entre erros e acertos.