1. Durante muito tempo se me afigurou como o maior de todos os temores o fim da vida privada, único refúgio contra a motoniveladora da realidade. Aguilhoam-na a exposição voluntária nas redes, a adesão cega às ideias do tempo; revelam-na a impressão de que as opiniões circulantes poderiam estar em quaisquer bocas, o devassamento da intimidade a ponto de sabermos onde se marcam até as mais recônditas tatuagens.
2. Mas eu estava errado. Na canção The Future, há mais de trinta anos, Leonard Cohen já havia previsto que a vida privada se explodiria.
3. O que eu devia ter temido era o fim da vida interior.
4. Este universo maior do que qualquer universo.
5. Feito de silêncio, algaravia, sensações e dormências, memória e olvido.
6. Fonte de toda poesia (e não me refiro aqui àquela que termina necessariamente num poema). A poesia em todos nós, que se tivesse de definir, em alguns rasgos débeis, diria nossa capacidade de maravilhamento, de assombro, de triste alegria e mistério.
7. De pudor. Não no sentido comportamental ou sexual (este tipo de pudor — ou despudor — só interessa a puritanos ou subcelebridades), mas como sinônimo (tão antigo que já estava no latim e no grego) de honestidade, recolhimento, modéstia e decência.
8. Sem vida interior, tudo acontece no imediato do instante. Presidentes boquirrotos, discursos de violência (que não demoram a se converter em ação), competições de estupidez, tertúlias de opiniões, e nada, nada sopesado, nada vivido e amadurecido na intimidade, sentido na intimidade, nada além de guias de comportamento, pragmatismos grosseiros, mercantilismo e outros filhotes da utilidade.
9. E assim também o universo da arte e sua crítica, aliados da efemeridade do mercado, julgando combatê-lo, mas adotando sua fórmula, há pelo menos sessenta anos: a exterioridade dos conceitos. Fala-se em reflexão, fala-se em conscientização, em valorização das diferenças. Trata-se de propaganda e não de característica íntima, imanente dos objetos. Por isso é fácil antecipar os lançamentos e antecipar mesmo antes dos lançamentos o que as resenhas vão dizer. Porque não existiram antes na intimidade de ninguém o tempo suficiente, nem haverão de se preservar na intimidade de ninguém o tempo suficiente para se tornar patrimônio pessoal de alguém.