1. Na poesia, como nos sonhos, ninguém envelhece.
2. Isto concluiu o poeta grego Odysseas Elytis, prêmio Nobel de Literatura em 1979, sobre a poesia de Safo.
3. Somos todos poetas quando sonhamos, e é de todo injusto que sejamos tão menos criativos despertos.
4. Foi o sequestro da compreensão humana pela lógica, pelo argumento, tantos nexos atribuídos e sacrificados em nome da coerência: nossos portantos, por issos, logos, postos que.
5. A compreensão é, na maior parte das vezes, um rio bem mais profundo. O que entendemos podemos esquecer, o que compreendemos, mesmo que esqueçamos, muda nossa relação com o mundo. Não há compreensão sem somatização. Tentemos um exemplo.
6. As gatas no sofá, suas pelagens reluzentes, ouro e prata acariciáveis. O livro de Safo aberto, o de Elytis ao lado. A homogênea tessitura da manhã em Buenos Aires, vozes de criança, o cheiro de um café vizinho, um puteo portenho, o sabor marinho do pão, barrado com a doçura clara da manteiga, e a luz do dia aberto na janela envelhecida.
7. A verdadeira compreensão envelhece menos, porque habita as partes em que a consciência e o sangue se misturam. Camões sabia disso quando pedia a seus leitores que julgassem o amor de que ele falava nos versos com a experiência de já terem estado enamorados.
8. Versos de Safo: minha língua se esfarrapa em silêncio, e um fogo/ sutil me corre sob a pele,/ e com os olhos nada vejo, zumbem/ meus ouvidos.
9. Dos nove livros registrados pelos bibliotecários de Alexandria, atribuídos à poeta de Lesbos, apenas uns quantos fragmentos e alguns poemas mais completos nos chegaram.
10. Como explicar que nos pareçam escritos agora esses versos de vinte e sete séculos?
11. É hora, quem sabe, de revermos nossa fidelidade ao mundo dos discursos sociais, da argumentação persuasiva. Gosto de pensar, embora haja uma importante chance de estar equivocado, que as dancinhas dos aplicativos apontam para o esgotamento de uma temporada de arrazoados sem alma e sem matéria.
12. Eu preferia que em vez das danças com movimentos duvidosos fossem leituras de Safo, esta pacifista sempre tão necessária, que entendeu que o modo de andar da pessoa amada é mais belo que todas as imagens bélicas e viris, frotas, carros, exércitos, que até hoje seguem a empolgar os que se excitam mais com som de cascos e metais do que com o roçar silencioso das peles.
13. As batalhas de Safo, suas rusgas corpo a corpo, desdobram-se em câmaras perfumadas, metade sonho, metade carne, em suspiros e lacunas, compreensíveis mesmo aos pedaços, mesmo em uma só palavra sobrevivente.
14. Quase três milênios depois.
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Foto da Capa: Freepik