1. É algo raro viver em uma cidade cujo passado é composto por viagens turísticas. As nostalgias parecem movimentos de uma outra existência paralela, nunca vivida, mas vivida nas evocações desta sombra errante que nos pervaga pelos túneis das artérias, dando-nos pertencimento, conhecimento do que não é nosso. Uma das sombras, pois em mim há pelo menos outra que tem certeza de ter percorrido as ruas de Roma por milênios. Certo não haverá na cidade que adotamos aquele pertencimento primitivo a um bairro, a uma praça, a umas ruas íntimas que só os moradores conhecem. E é inevitável se perguntar, depois de dois anos em Buenos Aires, se haverá algo semelhante a esse arraigar-se definitivo, que se converta naquela voz de posse que diz: meu café, minha livraria. E depois a necessidade ampliada de dizer minha cidade, a que conhecemos, como não conhecerão os paulistas que inflacionam os preços dos negócios; os franceses e alemães, que não são mais que figurantes do cosmopolitismo; os ianques que estão aqui para que possamos lográ-los. Não demora é capaz de nos besuntarmos no orgulho de termos escolhido a cidade, um excesso à la Padre Vieira: “Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra.” E ainda que Antônio falasse de seu tocaio Santo Antônio, há uma nota de vaidade neste supor-se grande como o mundo. Apenas passaremos nossos dias em outros lugares, diferentes de onde viemos, tentando compreender o que é o próprio viver, em paragens, não mais que paragens. O que são setenta, oitenta anos de conhecimento de um lugar? E dois anos? Sei, até agora, algumas palavras de lunfardo, dia sim, dia não, forço mais ou menos os duplos eles e o jota, poderia percorrer de olhos fechados o Parque Las Heras, quase na esquina aqui de casa, reconheço alguns calos dos portenhos, sua capacidade de putear longamente. Nascido e criado em Porto Alegre, creio conhecer, com alguma precisão, os dois bairros em que vivi. E que agora ganham cada vez contornos mais difusos: mudaram-se os negócios, derrubaram-se casas e o mato cobriu de todo a praça em que jogávamos futebol de meninos. Ao melhor, deixemos falar as sombras. Há uma que seguiu em Canela, outra em Capão da Canoa, e há esta que depois de conhecer as montanhas ao sul do mundo, pensa que nasceu para o frio de framboesas e mirtilos. Por ora sei de cor meu CEP, o nome do quitandeiro e de seu cão, e que a loja de sofá aqui ao lado não presta. Prometeram uma espuma inteligente. Mas ela reprovou no primeiro ano.
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Foto da Capa: Reprodução do Youtube