- Chove sobre Buenos Aires há seis dias. A umidade nas paredes, as toalhas ensopadas, a vida dentro de um armário de porão fazem lembrar de Porto Alegre.
- Ao descer em direção ao Mercado, no fim das tardes do segundo grau, mais certo em maio — hoje as estações do ano não são mais que abstrações úteis —, começava a temporada das meias geladas (e não sei se nos pés também há a confusão de outras partes do corpo entre frio e úmido).
- Quase uma hora na fila da Uruguai, sentindo os pés dentro de um charco portátil.
- Seria uma explicação para minha simpatia por personagens submetidos às mais horrendas formas de umidade. Raskolnikov ou o narrador de Uma solidão muito ruidosa, de Bohumil Hrabal.
- O desconforto nos pés combatia-o com os livros tomados da biblioteca de meu pai. Tornei-me um leitor nos ônibus para casa. E como certos livros não permitem interrupções, passei a sacrificar boa parte dos períodos no colégio. Assim terminei sentando na última fila de classes, junto à parede. Como um tarado que esconde revistas escandalosas dentro de um jornal, escondia meus livros dentro dos insulsos livros didáticos.
- Nesses dias de chuva em Buenos Aires, li muitas coisas. Talvez haja que reconhecer um papel da umidade e das tormentas no aumento de tempo para a leitura. Como se houvesse um aumento das virtudes da noite.
- Depois de quase trinta anos, volto a ler A sociedade de consumo, de Jean Baudrillard. Escrito em 1970, parece mais certo do que nunca, espécie de profecia já realizada, mas ainda capaz de surpreender por certas sutilezas, como entender o tempo das compras infinitas na chave de um dom mágico, virtual, um mundo em que só as compras nos unem.
- As meias eram uma lembrança de que a realidade está sempre em nossos pés. A realidade empapa os tecidos, provoca frieiras e até chulé, um mal que, por sorte, nunca me atacou de todo.
- A umidade é real. As paredes brilham, e a marca de minha mão nos azulejos tem uma efêmera semelhança com os rastros humanos nas cavernas dos livros de história.
- Que eu quase cobria com um romance de contrabando.
Foto da Capa: Ilustração gerada em Pikaso
Mais textos de Pedro Gonzaga: Leia aqui