1. Os lugares fechados, também os negócios substituídos por outros que lhes borram o passado à maneira de uma retroescavadeira, casas de show convertidas cafés genéricos, livrarias que resistem fantasmagóricas por detrás dos espelhos de alguma butique caça-turistas.
2. Às vezes paramos diante de uma fachada, ali fomos felizes, era um cinema em que nos pegamos aos tapas com nossos irmãos, eles não sabiam o valor do silêncio, o mesmo cinema em que descobrimos a textura túrgida de uma coxa.
3. Mudar de cidade é zerar a história de nossos lugares fechados. Escutamos os antigos falarem de suas catedrais, mas a nostalgia alheia é sempre doce, com uma nota até de patético. Os lugares que não perdemos tem qualquer coisa de ficcional.
4. O milagre dos lugares abertos há cinquenta, cem anos. Quantas crises superadas, mortes em família, venda de ativos, prejuízos, relações trabalhistas. Por isso, não mofo dos letreiros que se ufanam de seus “desde 2010”. Um ano, por vezes, pode ser uma vitória.
5. Maior se meu negócio vende coisas que pouca ou quase nenhuma gente mais quer: livros de poesia, discos, máquinas de escrever, chapéus. E casas de jazz.
6. Venho a Buenos Aires desde 2006. É o meu “desde”. Lugares clássicos de comida há muitos, e seguem abertos: Pizzarias históricas, cafés centenários. E livrarias vão e vêm, mas que mantêm belos acervos.
7. Mas o Notorious, minha casa de jazz favorita, já não está.
8. Há outras, típico consolo dado as perdas alheias.
9. Há sempre outros gatos, cachorros, pessoas para aqueles que não sentem o vazio desde dentro.
10. No lugar da Notorious, em frente à praça Rodriguez Peña, está uma cafeteria de rede. Entro e percorro o corredor onde havia discos e fotos das estrelas do gênero. O salão ao fundo, que dá para um jardim interno e onde se realizavam os shows, agora está pintado com uma cor creme e se parece com qualquer ambiente corporativo que amaldiçoa as cidades do mundo.
11. Fico ainda um pouco diante da fachada. Uma cidade começa a ser nossa quando já temos lugares para visitar in memoriam.
12. E para escrever-lhes uma elegia.
Foto da Capa: Reprodução
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