1. Tudo depende de onde os olhos afinam o foco. Ao escrever, espero que me ajudem a ver a tela — minhas mãos estão secas.
2. E um pouco manchadas, algumas ilhas aqui e ali.
3. O tempo. E mais o frio.
4. Pequenas escamas brancas, ásperas ao toque. Para isso está o creme, aquele que compraste, que cheira à riqueza, na loja de convidativo e bancarrotante amarelo.
5. Outros olhos talvez se perdessem nas unhas. Quaisquer olhos de quem devia escrever, melhor era que estivessem na tela.
6. Pouco pensamos em nosso corpo quando o foco se fecha. Escrever com o foco aberto, fazer do texto um estuário, para que aqui desaguem outros rios. E também aqui é preciso considerar um sistema de contenção, aquilo que na vida menos precavida costuma fracassar.
7. O que passa é que as margens da página têm lá sua rigidez, mas as páginas são muros empilháveis, interligáveis, distributivos. E por isso é possível considerar esses rios em sua força acumulada. Sem medo. Talvez não sem receio.
8. Há que usar o receio. Um olho na página, outro no mundo. O creme. Lavanda da Provença.
9. Um vizinho esqueceu a luz acesa. Deve ter ido viajar. Pela madrugada e ainda pela manhã, sua sala brilha como uma loja dos tempos da luz subsidiada.
10. No colégio nos fizeram crer que um texto precisava ter uma forma prévia. Uma redação, um conto, uma resenha, uma crônica. Em lugares em que ainda se prolifera a estupidez das questões de múltipla escolha — provas e vestibulares —, haverá ainda um século ou mais de categorizações. Trata-se de uma alegria simples e simplificadora. Tem narrador: é uma narrativa. Curta é conto, longa é romance.
11. Se um texto é um estuário, ampliando a possibilidade cada página, a ele podem correr os rios da narrativa, da lírica, do drama, da confissão, do ensaio.
12. Meus olhos se oferecem para que eu possa focar na página e contar uma história.
13. Se eu fizer isso fica mais fácil?
14. Se o texto terminasse agora não teria sua forma igualmente preservada sem que houvesse determinação prévia ou posterior de a que gênero pertence?
Foto da Capa: Freepik
Mais textos de Pedro Gonzaga: Leia Aqui.