1. Não lembro de ser um leitor quando pequeno. Sei que havia livros por toda a parte, frutos da paixão e do ofício de meu pai, mas não lhes guardo a sensação física — o que constitui, ao fim, a marca da leitura depois que se vão os enredos, as personagens, os versos que prometemos reter.
2. É nas mãos e nos olhos, no nariz rinítico, que o papel com suas letras impressas permanece.
3. O ônibus jogava como um bote na Pereira Passos, anúncio do início e do fim da jornada até o Colégio Rosário. Paralelepípedos. Muitos. Ainda hoje se pode visitá-los. Tão irregulares que faziam os bancos tremer e as luzes bruxulear. Depois de atravessá-la, eu abria o livro, antes de cruzá-la, fechava-o.
4. Eram quarenta minutos até o Mercado. Na ida e na volta. Cinco dias por semana, durante os três anos do segundo grau.
5. O que eu sou hoje começou aí. E às vezes penso que raro seria saber disso lá. Melhor saber disso aqui, onde é mais fácil (não muito, mas mais fácil) lidar com o que de defesa, de fuga, de descoberta, de insulamento que os livros sabem proporcionar.
6. A virtude do novo é sua inocência.
7. A virtude do novo é a instabilidade como experiência central formativa.
8. Os paralelepípedos da Pereira Passos, a travessia de volta ao real.
9. Creio que na vida não mareei nunca porque me treinaram os sacolejos do Assunção.
10. E se vocês escutam um barulho, pode ser das carenagens do ônibus, ou talvez o ruído das gatas que comem com espalhafato a ração fresca às minhas costas.
11. Há um poema egípcio, com mais de três milênios de idade, que diz o seguinte:
Devia me deitar em casa
e fingir que estou morrendo.
Então a vizinhança viria
embasbacada, e, talvez, ela viesse com eles.
Quando ela vier, não precisarei de um médico,
ela sabe a razão da minha doença.
12. Nas trepidações, a literatura me oferecia a constância das coisas humanas.
13. Quando anos mais tarde fui à academia fazer mestrado e doutorado, muito me decepcionou que boa parte das discussões envolvessem coisas óbvias como sociologia, política aplicada, teorias há muito obsoletas, ao contrário das obras que pretendiam iluminar.
14. Os livros que li no ir e vir do colégio me ampararam nas piras hormonais da adolescência, nas incertezas de quão repugnantes eram minhas banhas, não julgaram meu trocar de vales-transporte por garrapinhadas na rua Uruguai, afirmaram que nunca se está de fato sozinho quando há uma voz que se soma à nossa consciência a partir de sinais gráficos antes inermes.
15. E essa impressão de ter o papel entre os dedos, as capas, as lombadas. Quando chegar a minha hora, Tainá já sabe que quero levar nas mãos uma edição refinada das obras completas do Kaváfis.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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