- Houve uma época em que acreditei nas cadernetas para ser escritor. Aproveitava viagens e promoções e me cercava de moleskines. Como nos chás, o segredo está na cor e na textura das folhas. Ademais, se eram boas para o Papa Hemingway, também haviam de fazer um serviço por mim. Comecei várias, não terminei nenhuma. Trouxe um par na minha mudança para Buenos Aires, quase como uns recuerdos de otra vida, da juventude, seus equívocos e suas esperanças mais musculares.
- Achaques e melancolias. Seria um bom nome para essas páginas moleskinescas. Em algum lugar de 2006, aquele que fui fez uma lista de suas músicas preferidas. Nenhuma do Dylan — e este pobre diabo estava com trinta —, o que me parece um erro, ao menos corrigido posteriormente nas longas noites bonfinianas, também distantes, entre irreais e fabricadas para o benefício deste momento.
- Curioso é pensar que não sei quais são as músicas favoritas de minha mãe, se um dia as teve. Nos últimos anos, se for um tema dançante ainda funciona. Qualquer coisa mais elaborada a aborrece. Tempos atrás, diante de uma canção da Bethânia, sentenciou: deprimente. Leonard Cohen: voz grotesca. James Taylor: esse já não tinha morrido?
- Havia música na sala, em seu carro, fomos juntos a muitos shows. É tarde, creio, em função de sua perda de memória, para saber qual canção a resumiu na adolescência, se sofreu com os equivalentes aos meus Smiths e Cure, se encontrou algum gênero (para mim foi o jazz) que fez da música uma espécie de iluminação portátil.
- A caderneta não pôde me ajudar. De meus irmãos lembro de algumas preferências. Não as citarei para salvar o fim do ano. As do meu pai descobrirei na próxima ligação.
- Tainá me pergunta: música ou literatura? Digo a ela que o velho George Steiner escolheu a música, dizendo que tinha muita literatura dentro de si e que um mundo sem música seria um lugar insuportável. Modestamente, e por ora, respondo o contrário. Ainda tenho muita música dentro de mim. Na literatura sigo à espera do poema que revelará ao menos uma parte do mistério.
- Acaricio as capas das cadernetas, as bordas desgastadas, o tempo feito matéria admirável. E penso na tristeza das coisas digitais.
- Por não serem bem coisas. Rotinas, suportes, comandos, pacotes seriais.
- A tristeza de sua constância, de sua perseverança, de sua obsolescência virgem.
- O tempo não as marca. Não amarelam, não se cobrem de pátina ou de pó.
- São esquecidas, inalteradas, a cada atualização. São como esquecer. A tristeza das músicas que minha mãe perdeu.
Foto da Capa: Freepik
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