1 – Raramente recordo um sonho. A ver daí minha impaciência diante de histórias que dependam de narrar os sonhos de uma das personagens.
2 – Gosto, contudo, de narrativas que se abrem ao onírico. Especialmente de obras visuais que expandem a realidade factual.
3 – Conformar nossos sentidos apenas às ofertas do mundo é subordiná-los, em grande medida, a uma existência sem memória nem imaginação.
4 – Pois sonho noites negras, que tem da morte o pacato aniquilamento e da vida o necessário despertar.
5 – Mas às vezes algumas cenas sobrevivem, como hoje. Uma imensa avenida e Donald Trump, de capa vermelha, cortando-a com um séquito de showgirls a lançar bilhetes e mais bilhetes de dólares.
6 – Os argentinos e eu nos lançamos atrás dos lucas verdes. Talvez a voragem pela moeda americana já tenha feito casa nas recônditas covas do desejo.
7 – Uma senhora, lenço na cabeça, as mãos transformadas em dois leques de cédula, grita: Donald, tenés nuestros corazones.
8 – Como eu dizia, melhor ser poupado de tais narrativas, tão melhor a noite escura.
9 – E já sei que o comum é sonhar, que não lembrar de nada pela manhã é algum tipo de bloqueio. Estou bem assim.
10 – Se ainda pudesse sonhar os Sonhos do Kurosawa.
11 – Não. É acordar suado pelas cobertas muito pesadas e ouvir a voz da senhora ecoando: nuestros corazones.
12 – E nada de dólares.
13 – O que se ganha com isso? Desço para beber o café que a máquina há de me preparar, boa máquina brasileira, comprada em reais, divisa com que nunca sonhei.
14 – Há um mês tive um sonho estranho. Com sabor de vidro e corte, como dizia aquela canção. Mas o café está pronto e estou me contradizendo a cada nova linha.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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