1. Há tempos não escuto falar em relógio biológico. Às vezes certos conceitos ou expressões falecem para viver, como os seres, na memória.
2. Tenho, isso sim, um despertador biológico. Implacável, de uma precisão atômica.
3. Minha bexiga.
4. Sim ou sim, ela clama, sempre às cinco da manhã. Já pensei em mudar o nome desta coluna para Crônicas da bexiga.
5. Mas desperto em Buenos Aires sendo que por ora.
6. Junto comigo vai a Anna Swir, que dorme aos meus pés, com a fidelidade que os cachorreiros querem sonegar aos gatos.
7. Com sorte, volto a dormir. Amiúde, repasso o tanto que não sei à luz de cabeceira do que sei, enquanto a respiração constante da Tainá me tranquiliza. Alguma coisa fiz certo.
8. E de súbito é dia. Ainda que hoje a manhã esteja fechada com uma rara fumaça cinza que tende ao negro.
9. Parece que queimada é um outro conceito do passado. Que convém não lembrar.
10. Não sei se um dia superaremos essa ideia de compartimentação do mundo, como se não estivéssemos todos em uma só pedra envolta em gases, como se pudesse haver uma história do Brasil, da Europa, da América Latina, e não uma cadeia de fatos intimamente liados.
11. Nas províncias mais ao norte se fala de uma chuva escura, que cai fina como uma cerração.
12. Alguns dias, quando volto a deitar, começo a negociar um ajuste com minha bexiga. Meia hora a mais que seja. Mas seu silêncio é uma arma ameaçadora. Não te acordar seria pior, ela poderia ao menos dizer.
13. Anna Swir volta a se acomodar nos meus pés. A parte redentora da rotina.
14. Parece que os bichos e minha bexiga não temem a repetição.
Foto da Capa: Freepik
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