Imagine um país com mais de 10 milhões de habitantes, seguro, com clima ameno, muito sol, comida boa e uma burocracia de enlouquecer o mais tranquilo dos franciscanos. Isso é Portugal.
As histórias sobre a confusão do Estado Português são tão medonhas quanto folclóricas. Em quatro anos aqui, tenho algumas que demonstram o quanto pode ser exaustivo interagir (ou ao menos tentar) com um dos 745 mil funcionários públicos do país, seu emaranhado de sistemas informáticos e o apego aos micropoderes.
Para começar precisamos falar de autonomia. As escolas de administração que clamam pelo empoderamento dos “colaboradores” para que as jornadas de experiência sejam mais fluidas precisam conhecer os níveis de autonomia de uma repartição pública por aqui.
Os documentos necessários para qualquer coisa são os que “o servidor achar que são necessários”. Cada um pede o que lhe der na veneta e os sistemas de campo aberto aceitam qualquer coisa. Mas, no fim, e apesar de muito resmungo, eles sempre fazem o que você veio fazer, basta manter o controle e não desistir.
Vou exemplificar com um causo e já aviso que precisaremos de notas de rodapé:
Em 2020, no meio da pandemia, consegui marcar horário para ir até o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF*) fazer o agrupamento familiar da Gabi e dos Lobatinhos. Processo necessário para eles conseguirem a autorização de residência (quando uma pessoa da família consegue o visto, as outras se agrupam com ele como minhocas) e pelo qual passam mais da metade dos imigrantes legais no país, logo algo que deveria ser feito facilmente. Ledo engano.
Meu advogado me passou a lista oficial de documentos e indicou que levasse mais alguns “por segurança”. Achei estranho, mas o que abunda não atrapalha.
No SEF, haviam duas pessoas atendendo. Uma senhora loira e sorridente carimbava documentos e despachava o público para viver regularmente em Portugal como se fosse a magnânima dona de metade do Algarve. O outro, de cara amarrada, grunhia para o infeliz que tivesse o azar de ser chamado por ele para o atendimento.
Como o destino sabe que gosto de contar histórias, nos colocou nas garras do ranzinza. Sentamos, cumprimentamos (sem resposta) e entregamos os documentos todos. Ele os devolveu e rosnou: “Só me entregue o que eu pedir”.
Durante uma hora ele solicitou documentos que não tínhamos e eu, sóbrio e tranquilo, demonstrava meu total domínio da legislação vigente e os motivos pelo qual aquele documento era ou não necessário. Ele ouvia calado, baixava a cabeça e não demonstrava qualquer reação para a minha interlocução. Eventualmente, dizia-me que os que tínhamos não eram aceitos em Portugal e também me obrigava a expor meu mínimo conhecimento cartorial sobre autenticações com valor internacional. Trocava os papéis de ordem e nos xingava por não estar achando o que precisava. E, no fim, nos entregou a carteira de residência da mesma forma que a colega simpática.
Lembra que falei mais acima sobre sistemas com campo aberto? Por aqui, é mato. Campo para o número de segurança social aceita texto. Campo obrigatório pode ser deixado em branco. Caixa de seleção única aceita que vários itens sejam marcados e por aí vai.
Então vem a lição número dois: você pode preencher qualquer campo com erro, menos o seu número de telefone. Isso porque, um funcionário simpático vai ligar na sequência para avisar que a data de nascimento não foi preenchida no padrão americano (ano/mês/dia) ou que você escolheu três disciplinas opcionais para o seu filho cursar no ensino médio, mas ele só pode escolher duas.
Ah! E esse funcionário simpático (a Mafalda) vai falar mal do sistema usado. Porque todo mundo odeia a tal transformação digital (confesso que aqui, eu também odeio um pouco). Eles sempre relembram de como a vida era melhor quando todo mundo tinha que ir até lá pessoalmente e que todos os serviços eram regionalizados. Ou seja, naquele tempo romântico em que cada um dos 308 conselhos e mais de 3 mil freguesias faziam tudo do seu jeito.
Só que aos poucos esse modelo descentralizado vai perdendo espaço e o povo português – valente e resistente – se une contra a tecnologia como se lutasse uma Batalha de Aljubarrota a cada dia.
Explico assim, minha última história:
Comprei uma casa em construção no Conselho de Mafra, freguesia de Ericeira. Para passar a construção para o meu nome foi relativamente rápido. Apenas umas 7 certidões e 10 idas à Câmara para resolver coisas pontuais. De engraçado aqui, apenas a certidão permanente que eu tenho que renovar a cada seis meses.
Terminada a obra, iniciamos o processo de obtenção de autorização de moradia. Quando compramos a casa nos disseram que em um mês, no máximo três, isto estaria resolvido. Estamos há 18 meses nessa jornada.
Mas não pense que ficamos todo este tempo parados. Tem que correr atrás de vistorias de luz, gás, telefonia e até do nível de ruído. Tem que fazer um diário de obra, descrever o que foi feito a cada dia, listar todos os materiais usados e especificar acabamentos. Tem que pagar taxas, esperar, pagar outra taxa, esperar de novo.
E tudo isso, com um nível de transparência digno da Coréia do Norte. A qualquer questionamento sobre prazo, um olhar fuzilante. Quando estava quase fechando um ano dessa lenga-lenga, entrei em contato com o setor responsável para saber o status do processo. A pessoa que me atendeu disse que eu precisava entrar no site da Câmara e solicitar formalmente essa informação.
Fiz isso imediatamente. Dez dias depois, desconfio que a mesma pessoa ligou para me posicionar: “Está em andamento”. Questionei o que isso significava. Resposta: “Que não está parado”.
Há poucos meses, um raio de esperança surgiu quando o governo nacional anunciou a unificação dos sistemas e processos de autorização de moradia. Todos os conselhos e freguesias, agora, têm que seguir os mesmos passos, exigir os mesmos documentos e, o melhor, tudo é feito online.
Melhorou? Não, porque a Câmara de Mafra ainda não habilitou a possibilidade de submeter os documentos diretamente e você tem que levar tudo em CDs para que eles mesmos possam copiar e colar no sistema.
Esses dias, passei por lá, para ver como minha amiga Mafalda andava e como estava o meu processo. Ela me abanou por trás de uma pilha de CDs e disse que, como agora é agosto e está todo mundo de férias, deve demorar um pouquinho mais. Me recusei a questionar em relação a quê.
O lado bom disso tudo é que a União Europeia está injetando 750 bilhões de euros para a digitalização do continente. Portugal já está recebendo cerca de 68 bilhões. Entrei no portal de compras e licitações do Governo Português, mobilizei uma equipe de backoffice e dezenas de dias para habilitar minha empresa a entrar nessas concorrências. Já participamos de uma e estou há mais de 40 dias sem saber status e os próximos passos do processo.
A Mafalda deve estar em licença saúde.
* Nota de rodapé: o SEF está para ser encerrado desde 2020, quando funcionários espancaram até a morte um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. Ao vermos a notícia, nos olhamos e dissemos: bora punir os responsáveis por esta atrocidade, mas como assim encerrar um órgão público altamente demandado sem dizer o que ficará no lugar? Pois bem, isso acontece por aqui. Mas fiquem tranquilos, a cada seis meses, quando o prazo de fechamento do SEF se aproxima, o Governo anuncia uma nova data e diz que ainda não pode acabar com o órgão porque ele não está funcionando e só não funciona porque está para ser encerrado. Um caos.