O BuzzFeed, para quem não conhece, é a maior empresa de mídia caça-clique que a internet já produziu. Lançado em 2006, nos Estados Unidos, o portal tem um foco claro: alcançar métricas estratosféricas de audiência com entretenimento em meio a notícias superficiais sobre fatos relevantes da pauta jornalística. Nesta semana, a empresa anunciou a demissão de 12% da equipe e a contratação de um reforço para o time, o chatGPT, aquele que gera textos por inteligência artificial.
A BuzzFeed é uma autêntica empresa nativa digital, ou seja, nascida e crescida a partir da internet. Como estratégia, desde o princípio, esteve o diálogo com os algoritmos dos mecanismos de busca e das plataformas de mídias sociais. Os conteúdos com potencial de melhor posicionamento no resultado de pesquisa do Google e com gatilho de compartilhável entre usuários de Facebook e Twitter eram prioridade. O BuzzFeed também foi o rei dos quizzes de comportamento: você é mais “Emily em Paris” ou Emily do “Diabo veste Prada”? ou “Com quantos % de rejeição você seria eliminado do BBB?”
O perfil focado em métricas, palavras-chave, formatos sintéticos e títulos persuasivos (caça-clique) levaram o site a virar referência para outros produtores de conteúdo web, inclusive empresas de imprensa tradicionais que traziam para a internet o legado da indústria de mídia do século XX. As empresas estavam olhando para o BuzzFeed para entender qual era o segredo para alcançar tanta audiência. Muitas não ficaram só na observação e decidiram aplicar a mesma técnica para atrair mais leitores. O caso chegou a ser estudado por pesquisadores acadêmicos de Comunicação em um fenômeno que ficou conhecido como “buzzfeedização do jornalismo”. Este artigo, publicado em uma revista científica, apresenta os resultados da análise.
É por isto que eu digo que a buzzfeedização ataca outra vez, agora não no formato, mas na escrita do conteúdo propriamente dito. O chatGPT não é o primeiro software de geração de linguagem natural (GLN) que foi desenvolvido e nem o Buzzfeed o primeiro grupo de mídia a usar inteligência artificial. A Associated Press anunciou em 2014 que passaria a usar o Automated Insights para produzir relatórios financeiros e mais tarde também as notícias sobre jogos esportivos. Na sequência outros grupos de mídia anunciaram experiência como a Bloomberg e até o jornal The Guardian – sobre esta experiência também já escrevi aqui na Sler. O que muda desta vez, é que a parceria do Buzzfeed com o chatGPT altera peças no tabuleiro, já que o algoritmo do GPT tem entrado em rota de colisão com o algoritmo do Google, pelo menos por ora.
Quem trabalhou em redação online como eu sabe o quanto os redatores sofriam com os textos sobre o fechamento da bolsa de valores, a previsão do tempo e o resultado de jogos. Por quê? Porque o que importava era a informação direta e reta no mesmo padrão textual o mais rápido e curto possível. O texto devia responder o que o leitor quer saber. Pouco importa se o redator era o repórter mais premiado do jornal ou o foca recém-formado, o texto era sempre muito parecido. Não era o caso de explicar por que a bolsa fechou em queda ou descrever em crônica detalhada o lance decisivo da partida, o mais importante era publicar.
Hoje mais longe das redações de notícias factuais, eu percebo que houve uma desaceleração. A resposta do Google é mais rápida do que qualquer redator poderia ser. O algoritmo do Google responde o resultado do jogo, o fechamento da bolsa e a previsão do tempo, não é preciso acessar o site de notícias. O Google faz a varredura nos conteúdos e responde com link, ou seja, o Google é um cavalheiro e sempre indica quem produziu a melhor resposta. O chatGPT é diferente, é como um chupa-cabras, como dizia o bom e velho repórter premiadíssimo Carlos Wagner. Os conteúdos que vão gerar o texto são aqueles disponíveis na web, ou seja, textos meus e seus, e o GPT vai reescrever a informação usando palavras diferentes, sem atribuir a fonte, pelo menos assim o é na versão atual.
Falando em Carlos Wagner, farei uma ressalva jornalística. Ainda que os resultados de jogos sejam todos iguais, se o torcedor quer ler a crônica da partida escrita por um talentoso jornalista, aí sim, faz todo o sentido acessar o aplicativo, procurar o texto e se deliciar com os detalhes que só um cronista esportivo especializado é capaz de enxergar. O mesmo acontece com leitores da editoria de economia, para saber a situação da bolsa de valores e quais os fatores macro e microeconômicos estão relacionados à queda, é preciso um site especializado. Assim é, informação de qualidade, tem profissional qualificado fazendo apuração, estudando, entrevistando, analisando e escrevendo. O Google sabe disso e considera na hierarquização dos resultados. E são os textos originais que alimentarão o chupa-cabras chatGPT.
Fez sentido até aqui? O chatGPT por outro lado pode ser ma-ra-vi-lho-so para resolver os atendimentos automatizados em sites e WhatsApp. O robô de Inteligência Artificial é capaz de criar textos do zero e se alimenta de textos já produzidos, publicados na internet e rastreados pelos buscadores como notícias, fóruns, livros e blogs. Se o robô aprende com o que já está disponível, basta a empresa indicar toda a documentação de atendimento para alimentar o robô e, se ele for capaz de compreender o contexto da reclamação e orientar o consumidor. WOW, serei fã do GPT para Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).
Mas quem não deve estar tão feliz com o GPT é a Google. A OpenAI, criadora do chatGPT, tem como sócio o bilionário Elon Musk que já entrou em rota de colisão com a Google e com Larry Page, um dos fundadores da bigtech. Em 2016, Musk chegou a dizer que a inteligência artificial da Google “evocaria os piores demônios”. Os anos passaram e quem está assombrando a Google de Page é a OpenAI de Musk. Caso a geração de textos automatizados vire o padrão da internet, será cada vez mais difícil para o robô da Google identificar originalidade para ranquear os conteúdos nos resultados. O Google estabeleceu regras básicas para textos serem mais bem ranqueados em resultados e o chatGPT chega para subverter a ordem e forçar uma nova onda de critérios para otimizar as buscas.
Portanto, a pergunta é: se todos os textos forem cada vez mais iguais porque produzidos a partir da automação, seguindo os critérios de busca, como o algoritmo do Google vai diferenciar um texto do outro para ranquear resultados? A buzzfeedização está prestes a perder a vez para a GPTização dos textos. Aliás, se buzzfeed é padronização de textos e a automação reproduz padrões, seria este um reforço autofágico? A ver o que o futuro reserva para o nativo digital. Talvez a Google possa responder, por que eu posso apostar que em breve haverá uma nova camada algorítmica capaz de distinguir e hierarquizar o conteúdo original a partir de novos critérios. A Google que criou a profissão de redator para buscadores está agora frente a um novo desafio: enfrentar a homogeneização do conteúdo web. E esta é só mais uma batalha na guerra do conteúdo digital. Qual será a próxima investida da Google? Façam as suas apostas!
E para encerrar, só mais uma ressalva jornalística. Lá em 2010, quando eu trabalhava na redação de um jornal, eu lembro do desespero que batia nos repórteres que precisavam adaptar os textos ao padrão de redação para o Google. Era uma demanda hostil – Carlos Wagner que o diga! Aos poucos os profissionais de TI foram compreendendo que o texto jornalístico é diferente do texto para buscadores. São duas categorias de produção de conteúdo. O jornalismo pode trabalhar parâmetros de otimização, mas contar uma história de vida, trazer o ponto de uma fonte e o contraponto de outra não cabe nas planilhas de palavras-chave. Com a chegada do chatGPT, a regra está ficando bem clara, o redator para Google que faz a curadoria web acabou ou está com os dias contados e isto é bom para quem produz conteúdo original.