No anoitecer do dia 30 de novembro participei de um encontro que me emocionou muito e reacendeu a minha esperança. Conversei com alunos do EJA/Educação de Jovens e Adultos, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint´Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Falei sobre o valor do conhecimento, que abre portas e aponta caminhos, e sobre a minha trajetória pessoal e profissional. O olhar atento dos estudantes de várias idades e dos professores foi um estímulo maravilhoso. Seguimos conversando sobre outras questões fundamentais para o cotidiano de todos nós, como inclusão, acessibilidade, combate ao racismo e ao preconceito de qualquer natureza e respeito pela diversidade. Só tenho a agradecer à professora Jaqueline, coordenadora do EJA, pelo convite, ao amigo Baiard que me indicou e me levou até lá e à amiga Flavia Boni Licht, que nos acompanhou.
Saí revigorada pela energia daquele núcleo que trabalha com firmeza e afeto pela educação. Segue aqui o conteúdo da minha fala.
Diferença. Preconceito. Inclusão
A instituição dos direitos humanos nos trouxe a ética, o respeito, a solidariedade, a cidadania, valores fundamentais que precisamos preservar. Não podemos nos calar diante do preconceito, venha de onde vier. Ensinar, dialogar, dividir saberes e experiências sobre a diversidade é um compromisso que não pode ficar para amanhã. Essa é a grande tarefa da educação e de cada um de nós. Trago aqui uma reflexão sobre o sujeito marginalizado pela sua diferença. A sociedade cria mecanismos para segregar quem não corresponde aos padrões clássicos de beleza, comportamento, raça, origem e status social. E os grupos discriminados lutam pela conquista de dispositivos legais que os protejam. Mas a discussão não pode se reduzir apenas à conquista de dispositivos legais. Até porque precisamos de muito mais para anular o preconceito resultante de um processo histórico e cultural que fixa um modelo no qual o sujeito se inscreve desde o nascimento – a casa grande, a senzala, o macho, a fêmea, a raça pura e a raça impura, os seres considerados imperfeitos e por aí afora.
Não podemos anular as diferenças porque elas efetivamente existem.
O que desejo é alertar para a necessidade de prestarmos atenção ao preconceito que reproduzimos sem nos dar conta. Uma sociedade moldada por e para pessoas supostamente “normais”, que responde a padrões já traçados, impõe inúmeros limites. Nesse contexto, as pessoas diferentes ficam muito vulneráveis. Quem é discriminado pela condição física, mental, intelectual, social, racial ou pela opção sexual precisa impor o seu jeito de ser. Quando entendermos que a grande riqueza humana está na diversidade, esta discussão terá valido a pena. Cabe a quem tem uma diferença alertar e sensibilizar as pessoas para as suas limitações e reivindicar políticas públicas que priorizem a inclusão e a acessibilidade porque é um direito e um dever do Estado. Cabe aos educadores educar para a diversidade. Uma educação voltada para as diferenças é libertadora em todos os lugares, em casa, na escola, nos espaços públicos. E é fundamental que passe pela fala, pelo acolhimento, pela simplicidade, pelo afeto, pelo diálogo e pela segurança. Jamais pelo extraordinário ou pelo olhar capacitista.
Repensar a diferença e não ignorar as dificuldades que enfrentamos é um dever das administrações municipais, estaduais e federais, em sintonia com suas comunidades. São múltiplas as possibilidades que as diferenças trazem, fora dos discursos ultrapassados e redutores. Cabe às empresas entender os limites de uma pessoa com deficiência, estimular sua inserção no trabalho, orientar e não apenas jogá-la em uma função para cumprir a lei. De um modo geral, as instituições (públicas, privadas ou independentes), incapazes de sair do convencional, se enredam em normas na tentativa de facilitar um cotidiano que desconhecem. Desperdiçam a chance de conviver e aprender com uma pessoa diferente, ouvindo dela o que ela precisa. E assim inventar, reinventar, mudar, quebrar rotinas, se necessário.
O ensino, do fundamental ao superior, precisa trabalhar a cidadania e a consciência social para formar pessoas que respeitem o outro. A aprendizagem tem que estimular a troca de experiências, inquietar e mostrar que o cotidiano de pessoas que, como eu, têm uma diferença, é desafiador. Digo isso porque as diferenças acendem o preconceito – limite triste de uma sociedade que constrói barreiras quando deveria derrubá-las. Não podemos alimentar fetiches, clichês, piadas, heroísmo ou vitimização. Há que se ter cuidado para lidar com uma condição que corre o risco de cair em uma espécie de limbo cheio de silêncios e olhares invasivos, que contamina o enfrentamento necessário.
O desejo de falar sobre o impacto da diferença e do quanto o convívio é duro faz parte do meu cotidiano. Encarar uma vida com nanismo em uma época em que não se falava de inclusão foi desafiador desde a infância. Ainda é! Mas pensar a partir da perspectiva inclusiva ampliou meus horizontes. E contrapor-se ao preconceito, hoje com novos e perigosos impulsos, tornou-se mais urgente. As dificuldades enfrentadas pelas pessoas com nanismo no dia a dia são inúmeras e, em determinadas situações, me parecem quase incontornáveis porque uma boa camada da população não nos vê com naturalidade. Sempre digo que para além da eliminação de barreiras físicas, inclusão é cidadania, direito social, independência, acolher sem julgamentos.
Sei que muitas vezes radicalizo nas minhas posições e críticas, mas é necessário contrapor-se ao que nos constrange.
Sob o ponto de vista ético é desolador perceber que a palavra anão é usada para adjetivar situações que envolvem o grotesco, o indigno, o corrupto, o engraçado, o que provoca o riso fácil. Uso que mostra a discriminação enraizada, que se revela também nas definições dos dicionários. Vejamos uma explicação que encontrei em um dicionário do Google: “Significado de Anão, substantivo masculino: Aquele que, em relação à média, tem uma altura muito reduzida. Quem sofre de nanismo, pequenez anormal em relação aos demais indivíduos. Quem é muito baixo, raquítico, fraco, nanico”. Além de bizarra, a definição desconhece a nossa condição porque expressões como “sofre, raquítico, fraco, nanico” já estão contaminados pelo preconceito.
Esses usos indevidos já respingaram e ainda respingam muito na minha vida. “O ano ou um anão?” (artigo de Flávio Tavares publicado na Zero Hora no final de dezembro de 2019, referência ao ano considerado medíocre). “Salário com perna de anão” (referência ao salário baixo). “Anão moral” (Ciro Gomes sobre Michel Temer na época do golpe). “Anão diplomático” (porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Yigal Palmor, ao reagir às críticas do Itamaraty, julho de 2014). “Anões do orçamento” (grupo de deputados envolvidos em fraudes no final dos anos 1980), ou seja, a corrupção de políticos no poder é vinculada diretamente à estatura das pessoas com nanismo.
O uso preconceituoso de certas palavras/expressões está tão entranhado no inconsciente coletivo que poucos estranham. E quem sofre são as pessoas com deficiência, autistas, negros, índígenas, grupos LGBTQi+, entre outros. Esses seres “imperfeitos” incomodam porque apontam para uma diversidade de condições e comportamentos ainda não aceitos pela sociedade. As pessoas com nanismo, por exemplo, são rejeitadas desde os tempos medievais, passando pelos regimes nazista e fascista, quando a recomendação era que fossem eliminadas.
Portanto, por mais que tenhamos rampas, calçadas adequadas, balcões mais baixos, banheiros adaptados, elevadores acessíveis nossas vidas vão continuar frágeis se o preconceito que se desnuda sem freios não for combatido. A pior barreira é a discriminação que está nas entrelinhas de um texto ou em vozes que repercutem o dito sem contestar. E assim segregam quem não corresponde ao padrão de normalidade instituído. Segregação que está em comentários grotescos de comunicadores de programas de TV e em piadas vulgares que circulam nas redes sociais. O que me cabe neste contexto é pedir respeito, sem medo da minha diferença e das dificuldades que vêm com ela. Até porque “piadinhas ingênuas e sem maldade” também machucam.
E volto a cantar com Caetano Veloso, “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” porque “de perto ninguém é normal”. O caminho é longo, às vezes muito espinhoso, mas estou na estrada. Sempre estive.
“O corpo da moça não coube na roleta da lotação / que foi feita somente para os corpos magros / Todos olharam a cena indiscretamente / Vi risos sendo engolidos / Vi a moça se entristecendo, sem saber o que fazer /Vi o cobrador e o motorista com olhos de Capitu / Até que uma senhorinha que estava no banco reservado / resolveu intrometer e fazer o que ninguém de nós teve coragem / foi até a roleta, pagou a viagem da moça / e com o dedo indicou pra ela se sentar no banco preferencial / A viagem seguiu como se nada tivesse acontecido / Eu segui com o desejo de abraçar a moça e a senhorinha / Ainda seguro forte na mão das duas / É muito violento não caber nas caixinhas bonitinhas / que a sociedade tenta colocar todo mundo /Quem não cabe nessas caixinhas parece não fazer parte desse mundo cão.”
Poema de Altair Sousa
Foto da Capa: Encontro alunos EJA | Flavia Boni Licht