São inúmeros e frequentes os ataques de cachorros maiores envolvendo cachorros menores, e também seres humanos, inclusive contra inocentes bebês, que não têm a menor chance de se defenderem desses animais, e que pelo nível de agressividade, provavelmente já sofreram muito nas mãos dos seus donos, ou seja, sofrem maus tratos e revidam o que sofreram nas mãos dos humanos. Não raro, esses ataques resultam em mortes de humanos e cachorros, e os proprietários dos cães bravios culpam o terceiro pelo resultado do confronto, sem a menor culpa de terem sido na realidade os responsáveis por tudo o que aconteceu de errado e pela morte do seu cachorro quando isso acontece.
Escrevo isso, porque vi em plena luz do dia, em uma praia do Rio, que se orgulha de ter um bom policiamento, um homem treinando seu pit bull abaixo de socos na cara do animal que tinha de mostrar para ele que aguentava levar socos. Pensei em dizer alguma coisa, mas entendi que daí começaria a aula de como destroçar um ser humano… Chamar a polícia, então, poderia ser a minha sentença de morte… Esse é o Brasil.
Geralmente quando esses conflitos acontecem é o cachorro grande de alguém que anda solto, sem guia, sem focinheira, sem enforcador de cachorro para aqueles que nem mesmo um homem tem força suficiente para segurar, e o seu tutor ou tutora são ainda mais agressivos e estúpidos e animalescos dos que os próprios animais quando confrontados. Pessoas com problemas, que precisam também de muita ajuda, ou um bom tempo na cadeia para refletirem sobre o perigo das suas condutas.
Sou cachorreiro, tutor, ou melhor, pai de uma fox paulistinha, desde 2018, e já vivenciei na pele, ou melhor, na própria perna, o que, gratuitamente, um cão de um humano com poucas luzes, sem empatia, que desconsidera a lei, e que gosta de amedrontar humanos e animais, pode fazer. Em 2022, quando uma cachorra do estilo loba, no calçadão da praia em que morei por muitos anos no Rio, correu em direção a minha cachorrinha, eu a peguei no colo e a ergui para cima, e a cachorra atacou a minha perna. Quando ela largou a minha panturrilha e saiu, um surfista que viu a cena, me disse “senhor ela lhe mordeu”, e eu respondi “eu sei, é que quando eu senti a dor da mordida eu só consegui pensar, que bom que foi a mim que ela mordeu”. Como durante anos caminhei diariamente na praia de manhã cedo, no horário do almoço e a noitinha no verão, foram vários os ataques a outros animais que presenciei. Quando um pastor alemão após machucar a minha cachorra, na época com 6 quilos, colocou as duas patas no meu ombro e ficou rosnando a centímetros do meu nariz, eu imóvel pedi para os surfistas que estavam sentados em um quiosque chamarem a polícia. Ninguém ficou com coragem de intervir e o dono do animal apareceu e ainda disse vários palavrões pelo fato de eu reclamar.
A polícia via diariamente tais animais, e nada fazia para impedir que as situações acontecessem. Uma vez perguntei para eles por que não agiam de forma preventiva, e eles me responderam que a fiscalização cabia a prefeitura, e não à guarda municipal, mas que, quando solicitados, eles podiam ajudar. Morei em vários endereços no Rio, mas sempre pertíssimo da praia, jamais vi uma fiscalização advertindo o dono de um cão grande solto. Por outro lado, vi muita gente chorando com seus pequenos cachorros machucados ou gravemente feridos por cães bravios de pessoas estúpidas.
Essas histórias são comuns no mundo dos cachorreiros, com frequência se encontra um cão pequeno mansinho, com um olho furado, ou sem uma orelha, e justificativa do dono ou detentor do agressor, solto e bem maior, é sempre a mesma. Eu nunca imaginei que o meu cachorro fosse fazer isso, isso é coisa de cachorro… Ele é superbonzinho…
Em Porto Alegre, a exposição ao perigo das pessoas e dos cachorros menores em razão de cachorros grandes soltos, me parece parecida. Como não tem praia, gosto de circular pelo Parcão e o pelo Parque da Redenção, e também pela orla do Guaíba. Nesses lugares, raramente vejo um guarda municipal ou fiscal da prefeitura (nem sei se tem esse cargo por aqui), e os cachorros grandes muitas vezes andam soltos. Por mais bem treinados que sejam, são animais com uma inteligência bem limitada, e podem a qualquer momento se tornar violentos.
No outro fim de semana, uma pessoa das minhas relações me falou toda contente que pela primeira vez em anos havia visto um guarda municipal advertindo um rapaz que andava com dois ou três cachorros grandes no Parcão, para que ele colocasse as guias nos animais. Fiquei muito feliz com a boa nova. No domingo, me dirigi ao parque e não vi um único guarda no meio da tarde, dia preferido de um grande número de tutores de cachorros e de pais de crianças para levá-los para passear, mas vi cachorros soltos…
Há poucos dias, um caso de três cães bravios que atacaram e feriram gravemente uma escritora famosa, repercutiu fortemente nas mídias. Espero que o rigor da lei seja aplicado a alguém que deixa soltos três animais cuja raça é conhecida mundialmente como perigosa e é até mesmo proibida em alguns países.
Fiz uma busca na legislação local, e encontrei duas leis aplicáveis nos pampas gaúchos, uma estadual, portanto se aplica em todos o território do estado, e outra municipal, aplicável somente em Porto Alegre. Essa mesma estrutura se repete em vários estados e cidades, mas como boa parte das leis, são ignoradas pela população que diante da ausência da presença do Estado se comporta como bem quer e “toca o terror” nas pessoas e nos cachorros. Aquela expressão “sem lei não há civilização” não deveria ser usada no Brasil. O Brasil é um país que tem lei para tudo, mas elas não são aplicadas por aqueles que deveriam exigir seu cumprimento, e tem sempre alguém com a brilhante ideia de propor uma lei que já determina o que estava previsto em outra lei vigente, e ambas continuam a não ser aplicadas, face à ausência do poder público. Elas são do tipo “seis por meia dúzia”.
Voltei a morar em no Rio Grande do Sul há alguns meses, e confesso ter achado um ótimo sinal a Lei 15.363, de 05 de novembro de 2019, do Estado do Rio Grande do Sul. Reproduzo abaixo os artigos referentes aos cães bravios.
“DOS CÃES BRAVIOS
Art. 24. São obrigatórios, para o exercício regular da posse de cães das raças American Pit Bull Terrier, Fila, Rottweiler, Dobermann, Bull Terrier, Dog Argentino e demais raças afins, o registro do animal em órgão competente e a comprovação de seu adestramento e vacinação.
Parágrafo único. Os proprietários dos cães referidos no “caput” devem efetuar o registro de seus animais.
Art. 25. Os cães especificados nesta Lei somente poderão circular em logradouros públicos ou vias de circulação interna de condomínios se conduzidos por pessoas capazes e com guia curta – máximo 1,5 metros – munida de enforcador de aço e focinheira, que permita a normal respiração e transpiração do animal.
§ 1o É vedada a permanência dos referidos animais em praças, jardins e parques públicos, e nas proximidades de unidades de ensino públicas e particulares.
§ 2o O disposto neste artigo não se aplica aos cães pertencentes a órgãos oficiais, nem aos que estejam participando de exposições ou feiras licenciadas pelo Poder Público.
Art. 26. O não cumprimento do disposto nesta Lei acarretará ao infrator, proprietário e/ou condutor dos animais nela referidos, sanções que vierem a ser fixadas pelo órgão competente.
Parágrafo único. Constatada a inobservância de dispositivo desta Lei, qualquer pessoa poderá requisitar intervenção de força policial, sujeitando-se o infrator aos desígnios legais.
Art. 27. Para exercer a posse de outros cães considerados perigosos por sua força e agressividade, conforme vier a ser estabelecido em regulamento, deve-se observar o disposto nesta Lei.
Art. 28. Todo cão que agredir uma pessoa será imediatamente enviado para avaliação de médico veterinário, a quem incumbirá elaborar laudo sobre a periculosidade do animal.”
Confesso que procurei descobrir qual o órgão competente e as sanções que deveriam ter sido fixadas e não tive sucesso. Torço que o motivo por não ter encontrado, tenha sido a minha pesquisa insuficiente. Mas como destacado em negrito no Artigo 26 qualquer pessoa poderá requisitar a intervenção de força policial, sujeitando-se o infrator aos desígnios legais. De outra banda, vale refletir que no dia seguinte essa mesma pessoa que não respeita a lei, poderá lhe pegar desprevenido e jogar o cachorro em você ou lhe agredir de outra forma. Pessoas que não respeitam a lei, pouco se importam com os outros. Não têm alcance para entender a vida em sociedade.
Em Porto Alegre existe a lei municipal 8871/2002, que dispõe sobre a condução de animais da espécie canina. No papel a lei também é ótima. Não gosto de reproduzir uma lei na íntegra, mas considero muito importante que as pessoas conheçam os seus direitos e exijam que o poder público cumpra com o seu dever de proteção e utilize o seu poder de polícia.
“Art. 1º Fica proibida a circulação, em locais públicos que sejam caracterizados por aglomerações populares, de cães considerados de guarda, de combate ou de outra aptidão em que se destaquem componentes de força ou agressividade.
§ 1º – Excluem-se os cães pertencentes a órgãos oficiais, os utilizados na condução de deficientes físicos e os que estejam participando de exposições, feiras ou similares, autorizadas pelo órgão competente e orientadas por responsável técnico, desde que adestrados.
§ 2º – Será utilizado o poder de polícia na hipótese de descumprimento deste artigo, com a apreensão imediata dos cães presentes nos locais vedados.
Art. 2º Os animais de que trata o caput do art. 1º deverão ser identificados com microchips , quando atingirem a idade de 06 (seis) meses, informando as suas características, o qual conterá obrigatoriamente o nome do proprietário e/ou responsável.
Parágrafo Único. A identificação prevista neste artigo será feita no órgão competente do Município, acompanhada do cadastramento do respectivo proprietário e/ou responsável.
Art. 3º O cão que atacar pessoas será encaminhado ao órgão competente do Município para ser submetido a exame sanitário.
§ 1º – O proprietário e/ou responsável deverá apresentar o animal em até 24 (vinte e quatro) horas, a partir da ocorrência prevista no caput deste artigo.
§ 2º – Na hipótese de descumprimento do disposto no parágrafo anterior, o Município usará o poder de polícia para apreender o animal.
Art. 4º A vítima terá à sua disposição serviço municipal para diagnosticar as consequências do ataque no seu estado de saúde.
Parágrafo Único. O serviço referido neste artigo disporá de profissionais para orientar as vítimas quanto aos procedimentos a serem adotados para a responsabilização civil e penal dos proprietários e/ou responsáveis pelos cães agressores.
Art. 5º Os laudos que atestarem as condições do animal e da vítima formarão instrumento, contendo relatório com a descrição dos fatos e identificação do proprietário e/ou responsável pelo animal analisado, a ser encaminhado ao Procurador-Geral do Município que, vislumbrando indícios de crime, o enviará ao Ministério Público.
Art. 6º A liberação do alvará de funcionamento dos locais destinados à criação, pesquisa, venda, treinamento, competição, alojamento, tratamento, exposição, exibição e outros similares dependerá da nomeação de responsável técnico dentre as diversas habilitações que autorizem trato com animais.
Parágrafo Único. No prazo de 120 (cento e vinte) dias, os estabelecimentos previstos neste artigo deverão indicar o responsável técnico, sob pena de interdição.
Art. 7º As residências e estabelecimentos comerciais que possuírem cães de guarda deverão alertar os transeuntes, através de placa indicativa em lugar visível e de fácil leitura.
Parágrafo Único. Os locais referidos neste artigo deverão possuir muros ou grades de ferro, e portões de segurança, capazes de garantir proteção aos pedestres que transitarem nas proximidades.
Art. 8º Nas praças e nos parques públicos municipais cuja dimensão total seja igual ou superior a 10.000m² (dez mil metros quadrados), será implantado espaço destinado à livre circulação e à permanência de cães sem o uso de guia e coleira.
§ 1º Os espaços referidos no caput deste artigo serão denominados Espaço do Cão.
§ 2º O Espaço do Cão deverá ter cercamento de tela com altura mínima de 1,5m (um vírgula cinco metro), bebedouros e lixeiras específicas para recolhimento de dejetos.
§ 3º As normas específicas para o uso dos espaços de que trata este artigo serão definidas conjuntamente pela Secretaria Municipal dos Direitos Animais e pela Secretaria do Meio Ambiente.
§ 6º O disposto no caput deste artigo não se aplica aos cães referidos no art. 1º desta Lei.
Art. 9º As infrações ao disposto nesta Lei serão penalizadas com multa de 50 (cinquenta) a 500 (quinhentas) UFMs (Unidades Financeiras Municipais).
§ 1º – Na hipótese de reincidência, a multa poderá atingir o dobro do valor máximo previsto no caput deste artigo.
§ 2º – O proprietário e/ou responsável deverá assumir os encargos com as taxas de apreensão, a serem fixadas.
Art. 10 – A importância apurada com a aplicação das multas será destinada para investimento e custeio de instalações para a prevenção da hidrofobia.
Art. 11 – O Poder Executivo Municipal regulamentará esta Lei no prazo de 120 (cento e vinte) dias.”
Importante salientar que o Código Civil brasileiro estabelece a obrigação de indenizar aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, e também estabelece que “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”.
No direito penal, o dono ou detentor do animal poderá responder pelo crime ou resultado que tiver acontecido. Isso, obviamente, dependerá de cada concreto, e levará em consideração se houve a vontade deliberada do dono em causar o ataque, a morte, as lesões, etc., ou se ele agiu com dolo eventual ou culpa consciente. É muito tênue a linha que divide o dolo eventual e a culpa consciente. De forma sintética, o dolo eventual acontecerá quando o dono ou detentor do animal assumir o risco, ele não deseja aquele resultado, vislumbra a possibilidade de um segundo resultado, e mesmo sem querer que algo aconteça ele assume o risco de produzi-lo.
Já a culpa consciente quando o dono ou detentor do animal vislumbrar a possibilidade da ocorrência do resultado danoso, por exemplo, a ocorrência de um ataque com mortes ou ferimentos, mas ele acreditar que o evento não acontecerá, e confiar na sua capacidade para impedir que o resultado aconteça.
Cada caso é um caso, e muitas leis e até projetos de lei existem. Mas disposições legais já estão aí, vigentes em diversas cidades e estados. Mas mesmo que, ainda exista a necessidade de regulações, acredito que com as leis atuais o poder público em todo o país poderia reduzir drasticamente o número de incidentes, problemas e até fatalidades, causados por cães bravios, se agisse com maior rigor e com maior eficiência.
Tive a oportunidade de morar fora do país, e vi na Suíça os cuidados que os donos de cães bravios eram obrigados a tomar. Aqueles que não cumprissem a lei, perderiam seus cachorros e seu direito de terem outros animais, além de outras sanções legais. Aqui, às vezes, chega a parecer terra de ninguém. A impunidade vigora nesse setor.
Infelizmente os brasileiros somente começarão a respeitar as leis, quando sentirem bem o peso da espada da justiça, passarem um tempo na cadeia para refletirem sobre seus atos, e pagarem boas indenizações pelos danos que causarem. Anseio que isso aconteça logo, que esse país se torne um pouco mais civilizado.
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