Vi uma família tocando uma caieira no Sítio Luz, distrito de Canhotinho, cidade cuja dimensão assenta o sufixo.
Ali, a Jurema preta é o pau que dá: madeira espinhosa e massuda. O pai derruba dela mourão e estaca, deles faz cerca forte de sete arames, que é o cercado que segura gado brabo: não tem gado manso com água pouca e pasto ralo, que é o que recorre nesse lugar. Mas ele é vaqueiro bravo, do boi, só tem medo que se mirre as arrobas.
Robusto, o indivíduo derrotou a mata fechada do lenho farpado: casaca larga de tecido espesso cobre o dorso, facão em punho, peitou a mata alanhando ramas de ferrões traiçoeiros (cegam inexperientes). Pés botados em borracha preta de solado amarelo, pisa duro envergando espigão. Do arvoredo, tirou muito mourão, estacas e galhos. Ao machado de cabo comprido, vigoroso, o homem, num dia de lida, derrubou para mais de quarenta estacas: tombou, desgalhou, limpou de espinho, acertou as pontas. Tudo em golpe certeiro, lapada de aço afiado.
A panha segue de carro-de-boi (moderno: a roda é um velho pneu 16): nesse lugar, ainda é assim que se carrega o que sai do campo. Canga de burro não vence a tarefa: apenas uma árvore carregaria, bem pesado, um jegue.
Ele é bom condutor, toca parelha de nelore bruto para onde quer e necessita. São touros brancos de cupim bonito: mansinhos, na ponta da vara de carreiro experiente… Vara bateu na fronte, bicho dá ré; bateu nas patas de um lado, quadrúpede vira para o outro; bateu no meio dos córneos, besta estanca obediente; carreiro dá aboio curto, fera segue em passo lento puxando o que for. Ao que parece, animal e humano tiveram ensinamento um com o outro, no aviamento das obras.
O patriarca deixa o frete ao lado de vala funda já cavada: a vala da caieira. Mulher, filha e filho aguardavam o carrego.
Acomodam nesse oco no chão as madeiras secadas: lado grosso prá cá, lado fino prá lá. Tuia assentada, os machos pulam em cima, socam o conjunto estralando as delgadas. Compactado o feixe extenso, a família cobre o monturo com areia e barro. Pás sibilam no chão esborradas de saibro: braços traquejados cobrem o volume em quase um instante.
Caieira coberta, argila socada a tapas de pás, faz-se uma abertura com mão espalmada. Pelo orifício se ateia a flama: pau seco logo combusta, o lume corre ligeiro clareando o escavado escuro. Labareda ateada, a mão calejada tampa o olho flamejante da fogueira entocada.
O pai é a bitola do seu garoto, que o arrodeia em todo lavor. “Trabalho infantil”: diria uma gente flácida de Recife. “Ciências do meu pai”: diz o coração do menino.
(Anos antes, o genitor fez para o filho um carro-de-bode: um criativo e inusitado carro de boi infantil!)
Caieira é um sistema que segue ardendo por dentro. O consumar da queima não tem conta certa de tempo: varia conforme o tanto e a estirpe da lenha. Não se pode deixar crescer nenhuma vazadura no abrigo, não se pode deixar fugir o calor interior. A família vigia, seja noite, seja dia, o fogo que se entocou. Pois, perdido seria o esforço do pai se a sagrada árvore abatida não se purgasse em carvão: combustível para a chama de todo dia.
Às vezes, a vida é caieira ardente: só madeira boa sai dela, tornando-se fonte de bom ardor.
Para Edmilson Vieira de Melo (Milso), In Memoriam.
Todos os textos de André Fersil estão AQUI.
Foto da Capa: Acervo do Autor.