Hoje não é preciso gastar muita prosa para apresentar a qualquer pessoa Caio Fernando Abreu. Após sua morte, em 1996, Caio Fernando Abreu, Caio F. ou, às vezes, apenas Caio, entrou para o rol ambíguo das celebridades literárias online cultuadas por gente que admira o artista como uma ideia vaga e indistinta no horizonte mas que não se dá ao trabalho de ler sua obra. O resultado dessa conjunção de elementos é a profusão de pessoas compartilhando textos e frases de Caio que nunca foram escritas por ele – um fenômeno que também assola Luis Fernando Verissimo, Martha Medeiros e a campeã Clarice Lispector, entre outros.
Sobre isso, um parêntese rápido: há alguns anos, penso que tenha sido ali por 2018, entrevistei o diretor Luciano Alabase, sobre essa tendência que já era marcante no ainda ativo Facebook e que foi se transferindo de rede social em rede social sem dar mostras de cansaço. Ele, um amigo muito próximo de Caio, é da opinião de que o próprio Caio ele mesmo talvez não estivesse muito confortável com essa moda do retalho com a qual sua obra se prolifera nesta internet que ele pouco chegou a conhecer.
“Tenho certeza de que Caio odiaria essa coisa de tirarem frases dele de contexto e transformá-lo em um compêndio de trechos bonitos, de ajuda e motivação. Ele viraria um demônio e diria: ‘Não retalhem o que me demorou tanto para pôr um ponto final!’”, me disse Alabarse.
Fim do parêntese.
Em todas as mídias
Essa popularidade póstuma de Caio não se vincula apenas a cards de citações erradas escritas em ortografia suspeita em redes sociais. Sua obra tornou-se nascente de um amplo veio de discussões, reflexões, críticas, reimaginações. Ao longo dos últimos 20 anos, consigo lembrar de um bom número de livros que analisam aspectos de sua obra em conjunção com sua trajetória. Muitos deles, aliás, escritos por amigos com quem Caio manteve uma proximidade carinhosa. Paula Dip, por exemplo, a quem Caio dedicou o conto Pela passagem de uma grande dor, de Morangos Mofados (1982), lançou em 2009 Para sempre teu, Caio F., no qual compartilha cartas enviadas pelo autor e ao mesmo tempo retraça sua trajetória por meio de depoimentos de outras pessoas que com ele conviveram. Jeanne Callegari escreveu um perfil biográfico de recorte mais jornalístico e tradicional em Caio Fernando Abreu: inventario de um escritor irremediável, em 2008.
Há outras obras que revelam facetas bastante específicas não apenas da obra de Caio, mas de seus interesses. Outra de suas amigas, a astróloga Amanda Costa, lançou em 2011 Caio: 360 graus – inventário astrológico de Caio Fernando Abreu, no qual traça um paralelo entre o campo astrológico e as tramas fantásticas e místicas do autor. Em que pese o que este seu colunista em particular pensa do assunto (e que pode ser lido aqui), na obra de Caio a assim chamada “ciência dos signos” ocupa, de fato, um papel temático importante, e eu só não elenco exemplos porque eles estão já no livro da Amanda, se quiserem ler. Ah, também apareceu ali pela mesma época Caio Fernando Abreu e o cinema: o eterno inquilino da sala escura, do diretor e escritor gaúcho Fabiano de Souza – e o cinema era também um elemento recorrente em sua obra, como, alías, o foi para muitos dos escritores da mesma geração, como Roberto Drummond, João Gilberto Noll, Tabajara Ruas, entre outros.
A vida de Caio já virou mais de uma peça, seguindo variações da mesma estrutura: trechos de sua obra são entremeados com episódios de sua biografia e temas de sua literatura, como Caio do Céu, estrelada por Deborah Finocchiaro e dirigida por Luís Artur Nunes, ou (M) eu Caio, mais uma de amor, produção brasiliense dirigida por Carolina Vianna e estrelada por Arthur Tadeu Curado. Também o cinema documental se mostrou fascinado por Caio. Em 2013, Cacá Nazario e Bruno Polidoro dirigiram Sobre sete ondas verdes espumantes. O livro de Paula Dip gerou um documentário de mesmo nome dirigido por Candé Salles em 2015. André Canto dirigiu em 2019 Carta para além dos muros.
Academia
Em suma, esse apanhado que ficou mais longo do que deveria é o suficiente para demonstrar, para fins deste texto, que Caio é pop e que a passagem do tempo só lhe fez bem. Também na universidade seu nome figura entre os autores mais estudados de sua geração, ao lado de nomes como o da carioca Ana Cristina Cesar e do amigo de Caio João Gilberto Noll. Com tudo isso, talvez eu esteja procurando no lugar errado, mas gostaria de ler um elemento específico do trabalho de Caio que considero pouco abordado em toda essa repercussão contemporânea: como um dos melhores escritores de horror já gestados pelo Brasil.
Quando se fala de Caio Fernando Abreu, fala-se muito de como seu trabalho capturou a modernidade urbana e ao mesmo tempo devassou a linguagem literária em direção à fragmentada subjetividade contemporânea. Vem sendo muito estudado também seu trabalho como um dos mais ricos mananciais da literatura queer brasileira. Também há muitos que analisam sua obra em um contexto bastante específico dos anos 1970 e 1980 em que, principalmente na narrativa curta, houve uma explosão de obras influenciadas ou que de certo modo dialogavam com espírito do tempo e o então vigente Realismo Mágico. Assim, muito se tem analisado Caio como um autor de literatura fantástica (que não é a literatura de fantasia essa que vocês leem aí de bruxos, vampiros e elfos, mas sim a do fantástico no sentido que o define Tzvetan Todorov: aquela em que um elemento abrupto rompe a normalidade esperada e logo se torna parte de uma nova e mais inquietante normalidade). Juro que fizeram também um trabalho acadêmico para analisar Caio à luz da atualmente na moda “autoficção” (sobre a qual, aliás, escrevi este breve ensaio para a revista Parêntese: aqui). Sei lá, essa última abordagem me parece meio viajante, mas eu não li o trabalho, então não sei em que premissas está sustentado.
Para mim, enquanto leitor e admirador dos livros de Caio e sem jamais tê-lo conhecido ou trocado uma palavra sequer com ele, uma das coisas que me chamaram atenção logo de cara no seu trabalho é, mais do que o fantástico, que está lá sim, é uma vertente bastante específica desse fantástico em Caio: o horror. Sim, horror, mas, assim como o fantástico, não esse que você está pensando. Não há em suas obras vampiros ou lobisomens ou mortos-vivos ou zumbis, mas há uma sensação difusa de esmagamento, de um certo ceder ao desespero, de um esfacelamento do eu em contraposição ao mundo ameaçador. Tendo Caio bebido em fontes diversos que vão da espiritualidade oriental à cultura pop internacional de seu tempo, para mim esse efeito é bastante deliberado, e foi usado magistralmente por Caio como uma espécie de chave metafórica de mais de uma de suas angústias: seja o arbítrio em que o país vivia nos anos 1980, seja o estigma que durante muitos anos a sociedade conservadora impôs à homossexualidade. Caio é sim um autor urbano por excelência, mas essa urbanidade, bem como o mundo que cerca seus personagens, são expressas como um conto de horror, como se caio também escrevesse sobre “pessoas empilhadas na cidade enquanto os burocratas afiam o arame farpado” como escreve um seu contemporâneo, Rubem Fonseca, em um conto chamado Entrevista.
O horror
Meu primeiro contato com a obra de Caio Fernando Abreu se deu ali por 1993, quando eu peguei emprestado numa das bibliotecas da UFRGS (talvez a da Fabico, mas não tenho certeza) Pedras de Calcutá (1977) e o li em um final de semana. Eu meio que já escrevi uma versão ficcional levemente alterada desse episódio em um conto que foi publicado na coletânea O que resta das coisas, organizada por Ricardo Barberena, com histórias curtas inspiradas nos objetos de Caio guardados em seu acervo mantido no Delfos, da PUCRS. No texto, o personagem principal compra o livro (eu bem queria, mas o dinheiro era curto naquela época), mas tirando essa diferença, o maravilhamento expresso na história é exatamente o que senti:
“Uma epígrafe de Mario Quintana, na época poeta que eu lia adoidadamente. Na primeira história, curta, praticamente uma vinheta, um homem virava água. Água. E saía vazando pelas ruas de uma cidade transformada em rio. Na segunda, um grupo de figuras anônimas se reunia em volta de uma fogueira, um grupo doente apodrecendo dia a dia e queimando tudo o que tinha na tentativa de se aquecer em uma realidade em que o sol se foi e em breve o único calor possível será obtido apenas quando um deles se jogar nas chamas com sua pele gretada e cheias de pústulas.”
Descobrir esses textos foi uma revelação. Não pertenço a uma “elite intelectual” cevada e cultivada desde o berço – minha família era de classe-média baixa e minha formação, bem como a de grande parte dos da minha geração, se deu por filmes de horror na TV, quadrinhos partilhados com os vizinhos e obras de horror publicadas em papel vagabundo. Era um mundo de imaginação desenfreada que muitas vezes não encontrava diálogo nas leituras obrigatórias que eu recebia na escola. Caio e outros como ele, foram, assim, uma revelação que eu pude perceber mesmo nas profundezas abissais de minha ignorância. E embora fosse o que chamavam de “literatura”, havia um apelo pop inegável em sua obra, textos mágicos, mas também tocavam em coisas que eu poderia ter lido nas páginas em preto e branco de Aventura e ficção.
O incerto
Parte da atividade crítica é a definição, entendo isso, mas é em momentos como este, escrevendo este artigo, que entendo alguns autores que conhecia que não gostavam “de ter sua obra definida” num gênero muito rígido. Caio não era um “escritor de horror”, entendo muito bem isso. Sua obra e seus interesses eram mais amplos, e por isso, de certo modo, onívoro. Assim, Caio, embora não fosse um escritor de horror, escrevia o horror como parte de um projeto para captar um profundo desconforto existencial, não apenas dele, mas de sua geração.
Por isso, na opinião de um mero leitor, no caso eu,, Caio conseguiu seus melhores resultados na concisão da narrativa curta – , e lapidou suas melhores gemas na trilogia Inventário do Ir-remediável, Pedras de Calcutá e O ovo apunhalado. Hoje muito se fala, inclusive no mercado editorial, que livros de contos “precisam ter uma unidade formal ou de proposta” e isso leva a algumas coletâneas em que boas histórias parecem estar asfixiadas por outros contos menos felizes que estão ali mais para justificar a proposta do que por qualquer existência autônomo. Os livros de contos de Caio tinham uma unidade mais ampla, que se fazia concreta em um número bastante variado de gêneros, estilos e experimentações. Contos em que a linguagem e o quanto se pode suspendê-la e tencioná-la quase à ruptura é que são o centro da peça (penso de imediato em Para uma avenca partindo, por exemplo). Contos menos “fantásticos” e mais sutis sobre repressão e homossexualidade, como Aqueles dois.
E havia, também, muitos exemplos de histórias nas quais o horror é o veículo para o impactante subtexto. Já em seu primeiro livro, Inventário do ir-remediável, temos Apeiron, conto com um título que remete ao conceito filosófico grego da dissolução na matéria una do universo. Apesar desse toque filosófico algo estoico, a história é narrada pelo, mais que perturbador, perturbado, ponto de vista de um cadáver prestes a ser enterrado. Claro, isso é algo que só vai ser revelado no final, então lamento pelo spoiler, mas pera lá, o livro é mais velho do que eu, então faz assim tanta diferença?
Retratos, conto de O ovo apunhalado, narra a história de um homem que recebe todos os dias durante uma semana um retrato desenhado por um homem que parece estar acampado junto a outros recém-chegados numa praça de uma cidade. Não fica claro se a caravana é de mendigos ou ciganos, mas esse, aliás, é um dos motes centrais da forma como Caio aborda o horror: não é necessário que tudo fique claro, e parte do horror subtextual da coisa toda é justamente a ausência de respostas, o absurdo como uma experiência individual não comunicável e por vezes não compreensível.
Mesmo um autor elusivo como Lovecraft, por exemplo, ampara suas histórias em um entendimento pessoal mitológico do ser humano como um peão inefetivo em um jogo cósmico de proporções gigantescas. É essa revelação a base de muitos de seus horrores. O tipo de horror que também se popularizaria a partir de Stephen King também exigiria uma espécie de definição precisa de algo além dos domínios do humano que vai se revelando aos poucos. E boa parte da fantasia e do horror contemporâneos estão preocupados com o que se chama em inglês com “world building”, a construção de um mundo, de preferência um que possa ter lugar para uma série de aventuras, não apenas uma.
Mas Caio, fiel ao fantástico que se fazia no período na América Latina, não é tão cartesiano, suas histórias preferem o vago e deixam muito por explicar. Se Cortázar faz um personagem vomitar coelhinhos em Carta a uma senhorita em Paris, Caio faz de borboletas no cabelo um sinal de uma loucura progressiva a afetar tanto o narrador quanto seu companheiro André em Uma história de borboletas (em Pedras de Calcutá). Meu levantamento é de memória, não exaustivo, e se alguém quiser pegar esta ideia para se dedicar a um trabalho de fato consistente em termos acadêmicos, esteja à vontade (embora eu não ficasse brabo com uma menção discreta na página de agradecimentos se alguém fizer isso)
Não sei por que me peguei pensando tão detidamente em Caio e no horror. Pensar em Caio não é uma unanimidade por aqui, meus autores de predileção meio que se revezam ininterruptamente na minha cabeça a intervalos irregulares. Mas o horror… Acho que o horror tem ocupado muito minhas caraminholagens por um motivo mais simples. Com tudo o que aconteceu neste inacreditável ano de 2024, quem não pensou, ao menos por um breve momento, no horror que nos rodeia, talvez já esteja confortavelmente instalado em algum túmulo prestes a ser fechado.
Foto da Capa: Marcos Santilli, Companhia das Letras divulgação.
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