No dia 15 de maio agora, na Assembleia Legislativa, em Porto Alegre, houve uma audiência pública na Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, chamada pela Frente em Defesa do Cais do Porto, cujo título era “É preciso ouvir a sociedade”, para qual o governo do Estado foi convidado, na figura da Secretário de Parcerias e Concessões, Pedro Capeluppi, mas, novamente, nenhum representante do Poder Público compareceu.
Diferente tratamento foi dado à reunião pública chamada pela Frente Parlamentar do Empreendedorismo e das Desburocratização, também na Assembleia Legislativa, no dia posterior, cuja pauta foi “Concessão Cais Mauá”, tanto pela mídia quanto pelo poder público. Enquanto não houve sequer uma nota na imprensa acerca da primeira, em defesa do cais, a da concessão foi matéria em, pelo menos, dois jornais de grande circulação da capital gaúcha. E, evidentemente, na reunião sobre a concessão, o secretário Capeluppi compareceu como convidado principal.
Apenas por esse simples episódio, pode-se visualizar a importância que a administração pública – neste caso específico, a estadual – e o espaço que a dita grande imprensa dão à opinião da sociedade civil. Sem dúvida, não é nenhuma surpresa, mas tornou-se mais evidente, na última década, a perda progressiva da participação social nas decisões que afetam a todos nós.
Se fosse possível escolher o que seria implementado nos armazéns do Cais do Porto, o que a população – e não apenas alguns grupos – gostaria de ver ali? O quanto o imaginário popular é fruto do marketing urbano? É possível aliar desenvolvimento e identidade local? O que temos aprendido com o andamento do processo de privatização/concessão da nossa área portuária? Essas perguntas podem ser fios condutores para entendermos melhor as questões que envolvem a dúvida trazida no título.
Comecemos por algo bem simbólico: o nome. Vocês sabiam que a expressão “Cais Mauá” é marca registrada de propriedade do antigo consórcio de empresas, que assinou contrato em 2010 e, não tendo cumprido, foi rescindido em 2019? Ou seja, não podemos utilizar o termo, sem pedir permissão ao ente privado, que nada mais tem a ver com o lugar. E daí, entramos nos tópicos da identidade e do imaginário simbólico.
O Cais, historicamente, é o local de entrada da cidade e, para isso, foi construído em linha reta ao Palácio Piratini, assim como, não por coincidência, a cidade tem a palavra porto em seu nome. Ele faz parte da paisagem que caracteriza a Porto Alegre, formando um conjunto com a Usina do Gasômetro, não só para o estado do Rio Grande do Sul, como para o país inteiro. Portanto, é a história, a memória e a identidade da nossa cidade, que se cristalizam na paisagem cultural, formada pelos telhados dos armazéns, o Guaíba e as lembranças ali vividas pelos seus cidadãos.
Mas esta percepção que constrói nossa identidade e nos diferencia de outras cidades é tomada como contrária ao desenvolvimento, pelo poder público. Isso porque o modelo de desenvolvimento utilizado pelos governos estadual e municipal está centrado em uma concepção de mercantilização da cidade, de forma a colocá-la na rota dos investimentos internacionais, através da globalização e padronização das cidades. É uma receita utilizada em vários países, na qual, os projetos de revitalização de áreas procuram construir a imagem da cidade, através da valorização de uma arquitetura do espetáculo e de um mercado global.
A percepção da impossibilidade de conciliar identidade e “desenvolvimento” é expressa na matéria sobre a reunião citada no início: “Acreditam que a parceria público-privada pode impulsionar o desenvolvimento econômico, promover o turismo, gerar empregos e melhorar a infraestrutura local”. E, logo depois, a fala de um deputado estadual coloca a questão no âmbito político, quando ele diz que o manifesto elaborado tem o objetivo de “sinalizar, da forma mais representativa possível, a importância do tema, tendo em vista que deputados e grupos de esquerda estão articulando para obstruir a pauta da concessão do Cais Mauá”.
A “articulação para obstruir” a qual o deputado refere-se é a proposta de utilização dos armazéns formulada por professores da UFRGS em conjunto com a comunidade cultural de Porto Alegre. E o que ela propõe é a preservação do patrimônio material e imaterial, sugerindo um novo formato de gestão do complexo, para o uso de atividades culturais. Os usos propostos abrangem desde espaço para criação e fruição das mais diferentes expressões artísticas até economia criativa e solidária; desde a possibilidade de venda para as “carrocinhas” de churros e pipoca e comida regional até a alta gastronomia internacional; desde feiras e congressos das mais diversas naturezas à instalação dos pavilhões da Bienal, feiras, como a do Livro, festivais e festas. E tudo isso garantindo o acesso à área dos armazéns para toda a população, mesmo que a vontade seja apenas contemplar o Guaíba, tomando seu chimarrão. Hoje, é negado, ao cidadão, até o direito fotografar nosso maravilhoso pórtico.
Mas o que significa “promover o turismo”? Ter uma imensa roda gigante, como a de Londres, São Paulo ou Camboriú, restaurantes que têm filiais em todo o mundo e lojas internacionais? Não, o que o turista procura é exatamente o contrário: é a cultura local, com seus espetáculos, seu artesanato, sua comida típica, seus equipamentos culturais. Enfim, aquela diversidade que a diferencia do resto mundo. E essa é a proposta de ocupação cultural: tornar os armazéns uma referência, no país, de local cativante para o turista, ao mesmo tempo em que é matriz cultural, retroalimentando esse sistema.
Entretanto, tal proposta não é veiculada em jornais ou noticiários da mídia de massa, pois o objetivo do Estado é vender parte do Cais em um leilão a ocorrer em outubro de 2023. Assim como os sete guindastes, dos onze, protegidos foram vendidos como sucata, não há remorso, pela perda irreversível de nosso patrimônio. Também não é veiculada porque os interesses privados são muito maiores e poderosos do que o interesse público. Não é veiculada porque a participação popular nas decisões é considerada um empecilho para os grandes investidores, que não estão interessados numa das funções primordiais do turismo, que é a redução da pobreza e a inclusão social. E, pelo que se viu, a ausência do Governo do Estado na audiência pública do dia 15 de maio, aquela que não foi noticiada, demonstra que, também, para o poder público, não há grande entusiasmo pelos resultados sociais.
Por fim, é interessante refletir sobre o tão exaltado desenvolvimento econômico, a começar pelo seu conceito. Por muito tempo, o desenvolvimento econômico foi atrelado ao PIB per capita, como um indicador geral do quanto de renda era potencialmente destinado a cada indivíduo. Porém, hoje, o desenvolvimento econômico não se resume a esse aspecto, devendo ser considerado como desenvolvimento sustentável, nos âmbitos ambiental, econômico e social. Daí, ficam perguntas: o atual projeto proposto pelo Estado, que inclui a construção de nove edifícios na orla das docas, está considerando os impactos ambientais das construções? Será que a solução de isolar uma das faixas da Av. Mauá para os moradores, até o pórtico, para que eles possam ingressar com seus automóveis na área dos edifícios, é compatível com a mobilidade já problemática daquela região do Centro Histórico?
E, mesmo que apenas fosse considerado o PIB, uma recente pesquisa mostrou que a economia da cultura e das indústrias criativas do Brasil movimentou R$ 230,14 bilhões, equivalente a 3,11% do PIB, contra, por exemplo, o índice da indústria automobilística, que registrou um valor de 2,1% no mesmo período. Ainda segundo a pesquisa do Observatório Itaú Cultural, em 2022, o setor gerou 308,7 mil novos postos de trabalho em comparação com 2021. Foram 7,4 milhões de empregos formais e informais no país, o que equivale a 7% do total dos trabalhadores da economia brasileira.
Frente a essas questões, a Frente Parlamentar em Defesa do Cais propôs a realização de um seminário, possibilitando um debate mais amplo sobre o futuro daquele lugar icônico, considerando todas as suas características e sua grande importância não apenas para os porto-alegrenses, como para o estado do Rio Grande do Sul. O convite será extensivo a todos, porque…
É preciso ouvir a sociedade!
Foto da Capa: Bruno Todeschini / Câmara Municipal de Porto Alegre