Caiu a ficha que a vida não é sangria desatada. Duas expressões coloquiais em sequência que repetimos sem maiores reflexões ou questionamentos sobre seu significado. Eu gosto de perceber esse tipo de expressões populares e a forma como são adotadas em nossa cultura.
Caiu a ficha. Ou eu saquei tudo, entendi. Quem é do tempo do telefone público, ou como chamávamos aqui no Rio Grande do Sul, o “orelhão”, sabe do que falo. Colocava-se a ficha telefônica no aparelho e então esperava-se o outro atender. Quando assim acontecia, ouvíamos aquele clique da ficha caindo e a conversa poderia começar. Originalmente, a ficha cai para a conversa iniciar e também quando o tempo acaba, pois ela tinha um tempo pré-determinado de duração. Ao chegar perto do fim desse tempo, era necessário colocar outra ficha para que a conversa pudesse ter continuidade. Acontece que não havia aviso desse tempo e geralmente a ficha acabava sempre antes do mais importante ser dito ou no meio da fala. O tempo nunca parece bastar quando algo importante merece ser dito. Ligar a cobrar também era uma opção, mas aí se trata de colocar o débito do que desejo falar no outro, a conta é dele ou dela. E claro, deveríamos torcer para que a pessoa aceitasse a ligação quando, após seu alô, aquela famosa música de ligação a cobrar começava a tocar do outro lado da linha. Hoje temos WhatsApp. A conta monetária não é de ninguém especificamente, mas eu arremesso um recado ao outro e atiro na sua cara (o que equivale a seu smartphone) sem encargo algum a mim. O outro que administre minha demanda de comunicação, mesmo que aquele não seja o momento mais oportuno. Apesar das evidentes facilidades do WhatsApp, admito que sinto falta do empenho exigido pela ficha telefônica e pela busca por um telefone público para falar com alguém, além da capacidade de eleger o que mereceria ser falado e coubesse naqueles minutos que a ficha permitia.
Sangria desatada é outro termo bastante popular e que se refere a uma urgência, ou no caso, é usada muito em sua forma negativa, como “Calma, isso não é uma sangria desatada”. Uma sangria, ou processo de colocar algum ser para sangrar, deve ser estancada, atada, para que cesse. Desatar uma sangria é permitir que esse ser vivo sangre até a morte. Estaremos mesmo a viver reparando sangrias desatadas e vivendo em modo de sobrevivência? A vida não devia ser sangria desatada, mesmo que, por outro lado, também não deve ser garroteada demais só para evitar riscos. Eu penso demais nesses ditos popularizados que explicam muito mais do que possamos imaginar. Eu não sei muito bem como terminar esse texto porque tem semanas que minha cabeça não se autoriza a deixar as ideias fluírem para outros lados e me apego a pequenos pensamentos mundanos, como ditos populares que repetimos com pouca reflexão. Nenhum desses dois que apresentei hoje são muito relevantes. Talvez a ficha demore para cair para que a gente possa seguir conversando e aprendendo a selecionar melhor o que merece ser levado adiante antes do tempo acabar.
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Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais