Desde que o cais do porto de Porto Alegre deixou de ser porto, o caos decisório, no sentido da falta de objetividade do que fazer com aquela área nobre do centro da capital, passou a ser a regra. Por décadas, e segue… Um muro kitch, um estacionamento e um shopping mambembe são o retrato de um orgulho cívico em baixa.
A aversão ao Muro da Mauá tem muito a ver com o caos a que chegamos. O porto-alegrense, depois da queda do Muro de Berlim, passou a ver nele um símbolo da ditadura que chegava ao fim. Democratizar o país também era derrubar o Muro. Só que sintomas podem escamotear causas. A doença nunca foi o muro, o isolamento do porto é a verdadeira doença. Por séculos, ele foi integrado à cidade, dali partiam os barcos de passageiros para todo estado, ali estava a doca das frutas, chegavam os peixes… até que fizeram o Muro e deixamos de ser uma cidade portuária.
Se o Muro foi feito pelo regime militar quando o porto ainda era porto e o mantra da Segurança Nacional era voz sonante nesse país – cercá-lo era conveniente para essa doutrina –, também é verdade que seu projeto é muito anterior ao golpe de 1964: ele vem do transbordamento do Guaíba em 1941. Um gigantesco investimento foi feito para aterrar o rio/lago e construir diques em forma de avenidas e estradas que circundam a cidade (Diário de Notícias, Edvaldo Pereira Paiva, Castelo Branco, Freeway). A área aterrada abriga parques, shoppings, repartições públicas, estádio de futebol e casas de bomba que são acionadas para jogar água para fora no momento das cheias, algo como os moinhos de vento da Holanda.
No trecho entre o Gasômetro e a Rodoviária, onde já havia sido feito um aterro anterior à enchente de 1941 e, portanto, sem a precaução de proteger o centro das cheias que ainda não eram conhecidas, não havia outra solução que não a construção de um muro de concreto. De todo o fabuloso sistema de proteção que circunda Porto Alegre, esse trecho não ganhou crédito da população e foi taxado de desnecessário. “Abaixo o muro” virou mantra pós ditadura.
Felizmente, não houve quem tivesse tido a coragem de enfrentar a ciência e assinasse a ordem de derrubá-lo. As cheias desse ano e o horizonte do aquecimento global fez com que, finalmente, o “não serve para nada” deixasse de ser ouvido.
Poucas pessoas se dão conta que metade do comprimento do muro não tem nenhuma comporta, pois tem colado a ele o Trensurb, nosso metrô de superfície. A ideia de sair caminhando do Mercado Público até a beira do cais nunca acontecerá se ele não sair dali. A proposta de construir imóveis nas docas, nesse sentido, é esdrúxula. Vai ser inacessível a pé. Fazer túneis ou passarelas seria mais esdrúxulo ainda.
Se o Muro tivesse sido construído com uma comporta em frente de cada rua que chega até ele, e de mesma largura que ela, é possível que o Muro tivesse passado despercebido, sem virar assunto, pois o acesso ao cais continuaria livre. É pelas esquinas que se cruza uma avenida. Mas como eu disse, essa integração não era do interesse do porto e, mais tarde, ninguém prestou atenção a uma solução tão simples. Era preciso dar vazão à ânsia de derrubá-lo e sonhar com projetos totalizantes, feitos de uma vez só, para ocupação do antigo porto. Simplesmente integrar o porto à cidade, com a abertura de novas comportas, e pensar em como usar os armazéns era muito pouco.
Concursos de ideias e projetos de qualidade não faltaram, faltaram patrocinadores. Uma sede da OSPA digna de seu nome, shoppings que desagradaram, marinas, centro de convenções e mil outros programas de maior ou menor interesse foram propostos para ali. E para o muro também. Lembro de uma passarela divertida sobre o muro, cortina d’água e o estranho outdoor vegetal-publicitário atual. Passaram-se décadas e nenhum projeto virou realidade.
As últimas tentativas inverteram a lógica: em vez de o que fazer, quem fará. Uma coisa não mudou, a ideia do megaprojeto. O capital privado, o grande capital, passou a ser procurado para assumir os dois quilômetros e meio do cais como negócio de seu interesse, uma gleba a ser explorada comercialmente. Numa inversão de procedimentos, agora se buscava investidores. Eles poderiam fazer, se tivessem disposição e dinheiro, o necessário para buscar retorno ao capital investido.
Um primeiro assumiu a responsabilidade pela área e não cumpriu o que prometeu. Por anos, não fez nada. Aplaudi com entusiasmo quando Leite deu fim a esse primeiro contrato de privatização do Cais prometendo fazer diferente. Ledo engano, tudo não passava de achar outro concessionário para o mesmo pedaço de Porto Alegre. Sim, a ideia de delegar para alguma empresa a fachada da capital segue a mesma. Ninguém tem ideia do que farão. A única coisa que se sabe é que vão buscar retorno financeiro. E não teriam porque não fazê-lo. O primeiro leilão deu vazio, o negócio não era rentável. Com mais benefícios, talvez apareçam agora.
Eu duvido um pouco, aliás torço para que não apareçam. Construir prédios tão próximos e tão distantes do Centro Histórico me parece fora de propósito. Sem tirar o Trensurb e abrir comportas não há como integrar as docas à malha urbana do centro, não vai dar certo, não combina com o espírito das cidades do século XXI. Espero que os investidores se deem conta disso ou mais uma década será perdida.
O que o governo do estado oferece como isca aos empresários não é um projeto, é a ilustração de uma hipótese volumétrica. Muito ruim, por sinal. Quem vai decidir o que fazer ali vai ser a empresa ou consórcio vencedor do leilão. E o que você imagina que a empresa vai buscar de uma gleba de terra? Implantar negócios rentáveis que deem retorno ao capital investido. E não estão erradas.
Errados estamos nós, e o governador, em ceder espaço público tão significativo dessa maneira. O ideal, na minha opinião, seria fazer um plano de integração do Cais à cidade. Depois decidir o uso de cada armazém ou terreno edificável. Não sou contra a venda ou concessão de alguns lotes, desde que o poder público defina usos e o porte seja adequado ao entorno.
Bom mesmo seria construir na zona das docas, entre a rodoviária e o mercado, a nossa sala sinfônica, a sede do MAC, a casa de ópera, o centro de convenções sempre adiado e outros equipamentos de qualidade que carecemos. Enterrando o Trensurb e abrindo comportas a cada rua, os atuais quarteirões subutilizados da região da av. Júlio de Castilhos passariam a ser valorizados para hotéis, residências, comércio e tudo mais que uma cidade viva contém.
Há cem anos o governo do estado investiu no aterro e na construção do atual Cais Mauá. Nos legou a Praça da Alfândega, o MARGS, o Memorial do Rio Grande do Sul, o Farol Santander e outros prédios públicos de inegável qualidade arquitetônica, além dos belos armazéns do porto e uma urbanização aprazível. O que o futuro terá para dizer desse leilão?