Continuação de Capão da Canoa…
“Segunda minha mãe, fui pra Capão da Canoa a primeira vez com um mês de vida, para o apartamento da vó no Edifício Pindorama. Admito que não lembro exatamente desta viagem, mas ela deve estar em alguma gaveta do subconsciente.”
“Pros de fora, Capão da Canoa é uma cidade no litoral do Rio Grande do Sul, aonde os gaúchos vão nos seus verões.”
Capão da Canoa é cortada pela Avenida Paraguassu, avenida que aliás corta praticamente todo o litoral norte gaúcho, então, se você estiver perdido, procure-a e lembre-se que ela vai de sul pra norte ou vice-versa. Essa via tem de um lado o mar e do outro a serra. Se você imaginou a Big Sur, tire o cavalinho da chuva, pois nem o mar é aquele da Califórnia, nem a Serra tem paredões de pedra, tampouco a imagem é instagramável já que ambos estão há alguns quilômetros da Paraguassu.
A Paraguassu é a Faria Lima de Capão da Canoa, a vida econômica da cidade passa por ela e, naqueles anos 80, além da Prefeitura, lá tinha a Manlec, onde comprávamos a TV de tubo quando a velha queimava, ou a bicicleta nova; o Real, supermercado mais completo da praia; Sociedade dos Amigos de Capão da Canoa (SACC), com suas piscinas transparentes e seus bailes inesquecíveis; o posto de gasolina, que também era estacionamento; e a Central Telefônica da CRT (a estatal Companhia Riograndense de Telecomunicações).
A Central Telefônica era um refúgio de dignidade em meio à barbárie humilhante dos Orelhões. Porque nos anos 80 raro eram poucas as pessoas que tinham telefone fixo, enquanto celular era ficção de Perdidos no Espaço, então toda a comunicação era através dos Orelhões e suas tripas de fichas telefônicas da CRT. Poderosos eram aqueles que sabiam onde ficavam os Orelhões vazios, já que os comuns perdiam às vezes horas na fila para aguardar sua vez.
Mas o problema menor era a fila, o maior era discutir assuntos particulares numa plateia de 20 pessoas. “- Oi amorzinho, por que você não veio pra praia, estou aqui e nada de você chegar”, se debulhava o apaixonado, enquanto alguém na fila fazia a chifrinho de corno com a mão pro riso abafado dos estranhos. Alguns namorados sabendo das consequências, se entocavam dentro da concha do orelhão e falavam baixo com a mão abraçando microfone. Esse era o pior dos erros! O silêncio na fila era total, as pessoas prendiam a respiração para ouvir a conversa, até a cidade se calava esperando o deslize do incauto, até que chegava aquele momento em que a ligação ficava baixa, a interlocutora não escutava e o enamorado falava alto: “-EU DIGO O TEMPO TODO QUE TE AMO, JUJUBINHA, E SÓ RECEBO PATADA, DEIXA MINHA MÃE FORA DISSO”. Nisso a fila explodia em gargalhadas, gargalhadas com algum sofrimento, já que a fila andava e a vez do gracioso ia chegar… Se bem estudado, acho que minha geração aprendeu a ser sóbria e lidar com assuntos delicados de forma fria na fila do orelhão.
A Central Telefônica, então, era uma espécie de Oásis no deserto de humilhações dos Orelhões de rua, com suas cabines de vidro e uma espera que contava com ventilador e televisão. Ruim mesmo era o preço. Mas, para os usuários de Orelhões, sempre resta a esperança bíblica de que os humilhados serão exaltados.
O Real tinha produtos inexistentes nos pequenos mercados do entorno, mas ficava longe do apartamento, aliás, longe, longe não ficava, mas, pra uma criança de 12 anos carregando duas melancias embaixo do braço, as distâncias dobram com muita facilidade. Somam-se ao trauma dos orelhões, os das melancias. Por que a vó insistia em comprar melancia no Real, se passavam caminhões vendendo? Economia às custas dos meus braços! Tempos opressores antes do ECA! Se tivessem redes sociais naqueles tempos, viralizaria minha dor…
No meio da Paraguassu tinha um Raupp´s Lanches,
Tinha um Raupp´s Lanches no meio da Paraguassu,
Tinha um Raupp´s Lanches
No meio da Paraguassu tinha um Raupp´s Lanches.
Nunca me esquecerei desse acontecimento,
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca esquecerei que no meio da Paraguassu,
Tinha um Raupp´s Lanches
Tinha um Raupp´s Lanches no meio da Paraguassu,
No meio da Paraguassu tinha um Raupp´s Lanches.
Carlos Drummond de Andrade disfarçou com Pedra e Caminho sua verdadeira intenção poética, se não pra preservar sua amada Itabira, então para não reconhecer a ascendência do Raupp´s Lanches sobre a comida mineira.
O Raupp´s Lanches era uma novidade naqueles anos 80. Os pasteis do entorno do Edifício Pindorama dominaram minha infância e duvido que em uma autopsia não identifiquem aquele óleo vencido nas minhas dobras intestinais mesmo depois de tantos anos. Então já sabem, se em um acidente meu corpo ficar irreconhecível, procurem minha identidade ali.
Como só os diamantes são eternos, o império dos pasteis ruiu com a chegada do buffet de cachorro-quente que se instalou na última loja do entorno do Pindorama para desespero das pastelarias.
Salsichas e linguiças tipo uruguaia (Pancho) saindo soberanas para fora daquele pão aquecido no vapor, languidamente caídas como braços roliços de postais eróticos franceses: começava a jornada de maioneses, mostardas, ovos cozidos, queijo ralado, bacons, milhos, tomates, alfaces…
Então um sábado faltou gás e decidimos comer fora, meus pais não aguentavam mais o tal buffet de cachorro-quente, então fomos procurar onde comer na Paraguassu e eis que nos deparamos com o Raupp´s Lanches. Entre um gole e outro da Coca-Cola de 1 litro em garrafa de vidro, e uma mordida e outra daquele X Coração, nascia uma paixão.
O Raupp´s Lanches sabia seduzir um coração juvenil, afinal de contas aquela maionese em um copo de cafezinho, com uma colher de sorvete para servir, desafiando todas as regras da higiene, era um convite ao pecado da gula.
Raupp´s cresceu, ocupou uma esquina, colocou buffet, garçons de camisa branca, sempre aquela cerveja gelada e transmissão dos jogos da dupla Grenal, um segundo lar em Capão da Canoa.
Ele sempre estava lá! Naquele inverno mais inclemente, o Raupp´s Lanches estava lá; naquela chuva mais torrencial, o Raupp´s Lanches estava lá; naquele fim de festa, o Raupp´s Lanches estava lá. Dissessem que eu não encontraria o mar em Capão da Canoa, mas não ousassem insinuar que o Raupp´s Lanches não se faria presente. Na placa de entrada daquele coloco gastronômico estava escrito: “- Bicuíra desde 1983”! Capoense até debaixo d´água.
Os estrelados Michelin nunca aceitaram o reinado absoluto do Raupp´s Lanches, Paris nunca se conformou em ceder o posto de capital gastronômica mundial pra Capão da Canoa, então houve interdição pela saúde em 2016, tiroteio com 5 feridos em 2018 e até que, em 2022, o Raupp´s Lanches fechou as portas…
Hoje a esquina do Raupp´s Lanches abriga lembranças; o coração do X Coração deixou de bater; então me pego vagando por Capão procurando em outras lancherias aquela maionese no copo de cafezinho com colher de sorvete; sumiram os banheiros de cimento, com os cheiros ancestrais se revolvendo naquele mictório de tijolo com 8 lugares; quanta saudades dos meus amigos garçons que eu não sabia o nome, mas, mesmo assim, eram amigos de infância; dos abraços em desconhecidos a cada gol do Internacional…
Descansa em Paz, Amigo: Nunca te Esqueceremos!