Segunda minha mãe, fui pra Capão da Canoa a 1.ª vez com um mês de vida, para o apartamento da vó no Edifício Pindorama. Admito que não lembro exatamente desta viagem, mas ela deve estar em alguma gaveta do subconsciente.
Pros de fora, Capão da Canoa é uma cidade no litoral do Rio Grande do Sul, aonde os gaúchos vão nos seus verões.
O Edifício Pindorama tem o formato de um grande quadrado situado a uma quadra do mar naquilo que se considera o centrinho da praia de Capão. O centro desse quadrado é aberto e é lá onde as crianças brincam e os adultos conversam tomando chimarrão. Tem a tradicional churrasqueira e um cano de ferro para amarrar as bicicletas.
O prédio visto de dentro lembra uma fortaleza onde os três andares de apartamentos são os muros da cidadela. Num dos cantos do pátio interno está a casa do zelador, de madeira, maior, inclusive, que a maioria dos apartamentos, o que sempre despertou certa raiva nos moradores.
A vó costumava ir para Capão logo depois do Natal. Levava os cachorros e as tralhas para ficar até março. A mãe desovava eu e a minha irmã mais ou menos na mesma época e recolhia próximo ao início das aulas.
O apartamento tinha dois quartos, sala e sacada. Da sacada se via de revesgueio o mar. No quarto da esquerda tinha um treliche de madeira. A última cama ficava a uns 40 cm do teto e era a minha preferida. Havia um armário com dois ganchos nas laterais, os quais quando eram soltos liberavam o colchão de casal onde meus pais dormiam quando ficavam conosco. Tinha um roupeiro e uma penteadeira.
O quarto da vó tinha um sofá e um armário embutido. A cama também ficava camuflada num um armário fake. O sofá da sala era de corino verde e tinha duas almofadas de encosto. Da sua extremidade saía um apoio onde podia ser posta uma almofada para ele virar uma cama. A cozinha era pequena, além do fogão, geladeira e armário, cabia uma pessoa.
A televisão era sempre o grande desafio do veraneio. O zelador subia no telhado pra posicionar a antena. Alguém com meio corpo pra fora da janela ia gritando se a imagem estava boa. Ou então, quando algum temporal tinha arrancado ela do telhado, tentávamos o bombril na antena interna da própria tv.
As amizades de verão eram efémeras, pois os amigos vinham e iam na rotina dos aluguéis de temporada e, também na da cotação do peso: quando nosso dinheiro afundava, os argentinos dominavam a cena.
Triste a vida de quem nasceu em janeiro em terras gaúchas. Sempre carreguei muita inveja de quem fazia aniversário durante o ano letivo, na sua cidade, cercado dos amigos e do pessoal da escola, contrastando com aquela sala pequena do apartamento do Pindorama, mal e porcamente lotada de estranhos angariados pelos corredores do prédio… Ah se eu tivesse nascido em junho…
Minha Caloi azul ficava amarrada no ferro com um cadeado. Com ela eu era uma alma livre nos meus precoces anos de existência, desbravando Capão da Canoa, Atlântida, Xangri-lá, Albatroz, cruzando do mar até a Lagoa dos Quadros.
Alguém com toda essa coragem era merecedor de um sorvete de 3 bolas na Gelf´s do beco que o Hotel Riograndense fazia com o Boliche em Capão. Limão e maracujá eram sabores permanente. A última bola variava. Aí me descobri predominante conservador com uma bola progressista.
O tal boliche ficava em um prédio de madeira imponente ao lado da praça, e só o frequentávamos quando nossos pais vinham passar o final de semana na praia, porque minha avó já não tinha saúde pra derrubar os pinos. Mas não era só o boliche, na lateral da pista tinham máquinas de pinball e fliperama. Acho que se fechar os olhos e respirar fundo, ainda consigo escutar aquele barulho de bolas de boliche, pinos, pinball, risos e gritaria.
Na quina da praça, ao lado do boliche, ficava o Longo, uma espécie de supermercado, armarinho e papelaria. Minha vó gostava de ir lá, talvez por ser antigo como a praia. Ela sempre contava que no começo era um dia de viagem para chegar em Capão da Canoa. O lugar tinha um cheiro esquisito, de coisa velha, comida e tecido.
Os cheiros, aliás, definem minha infância litorânea, já que as lojas de fora do Edifício Pindorama eram predominantemente pastelarias, e as chaminés de exaustão ficavam apontadas para o pátio interno. Mas não podíamos reclamar, volta e meia estávamos refestelados naquelas mesas com um pastel de camarão transbordando pra fora do prato.
Mas comida de verdade era a do Maquiné, do lado da Rodoviária, em frente à Praça do Minigolfe. Começava com uma sopa que era uma mistura de canja com sopa de carne. Depois vinham os peixes, salada, arroz, feijão, bife e ovo. Tudo era servido na mesa. O lugar tinha azulejo nas paredes e mesas de madeira escura.
Pouco falei do mar, pois por lá ele é alguém difícil de lidar. Ora eram ressacas que acabavam com a faixa de areia; ora estava marrom com uma espuma da mesma cor; e impreterivelmente a água era gelada. Mas era só começar as aulas, com o final do veraneio, para alguém dizer: “-Capão tá maravilhoso, o mar tá quente e parece Santa Catarina”. A raiva era palpável.
Tínhamos uma rede de saco de batata preso em duas taquaras para pescar na beira da praia aqueles peixes pequeninos. Colocávamos eles no baldinho e, sem limpar, fritávamos e comíamos antes do almoço.
Legal era pescar com o pai, o que acontecia de vez em quando. Se fosse de caniço, tínhamos de achar tatuíra de casca mole na areia da praia pra usar de isca. Que trabalho! Eu cavava com as mãos, o pai ficava afundando os pés quando a onda vinha. Depois de horas, quando muito, se levava um 3 Papa-terras pra casa. As vezes íamos de carro pela beira da praia pra um lugar baldio para pescar de rede. O pai ia lá no fundo enquanto eu ficava dando corda. Não cabia dentro de mim da coragem do meu pai enfrentando aquele mar.
Eu também enfrentava o mar de capão com minha prancha de isopor. Acho inclusive que a vida aprendeu a nos dar tombos em um tutorial do mar capoense, pois eram pernas passando pela cabeça, rolagens laterais, cara esfregando na areia e, quando você conseguia colocar a cabeça pra fora pra respirar, já vinha outra onda pra recomeçar a desgraça.
Quando Heráclito escreveu que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio, na verdade estava falando do mar de Capão da Canoa, pois o repuxo lateral anulava qualquer propósito de autodeterminação pessoal. Mas no meio da praia havia o Baronda, havia o Baronda no meio da praia.
Essa construção que avançava extravagantemente na areia, era um bar restaurante que era o norte do banhista capoense, sem ele certamente famílias teriam sido definitivamente separadas durante o verão.
O milho verde cozido era outra referência essencial de Capão, seja em casa, seja nas banquinhas. Inesquecível a agilidade daquele vendedor catando o milho no panelão com o garfo e em seguida deitando-o sobre as próprias folhas pra receber as pinceladas de margarina e o sal abundante. Como eram felizes os verões antes do colesterol!
Depois do almoço a preguiça. Então se ouvia: “-Olê, puxa, puxêê”. A bicicleta de puxa-puxa passando na sua casa no tempo em que triglicerídeos devia ser o nome de algum monstro que o Ultraman enfrentava.
E o tempo passou, a vó morreu, minha mãe prefere ficar em casa cuidando dos cachorros. A demência fez o pai esquecer de muitas coisas, talvez não consiga mais colocar a rede naquele mar bravio. O Pindorama continua lá, com suas pastelarias e lojas de bebida, mas pra entrar precisa da chave do portão. O Hotel Riograndense e o boliche foram demolidos para dar lugar a um shopping e um prédio. A Gelf´s se mudou do beco que sequer existe mais. O Baronda foi demolido depois de declarado incompatível com certas regras ambientais. O Maquiné continua existindo ao lado da rodoviária que não existe mais ali, trocou o azulejo das paredes por um aspecto mais moderno e instalou um sistema de bufe além dos pratinhos.
Sigo veraneando em Capão da Canoa. Às vezes levo meus filhos para passear nas ruas invisíveis da minha infância. O Pindorama ganhou um elevador. Minha Caloi nunca mais foi vista no bicicletário. Sigo conservador nas bolas de limão e maracujá e permaneço progressista na terceira bola.
Continua…