A extrema direita bolsonarista, rotineiramente acusada de não ter empatia com o próximo, protagonizou essa semana momentos de pura ternura ao defender a Capivara Filó.
Filó foi criada pelo TikToker Agenor Tupinambá que, na versão bolsonarista, seria tipo um Tarzan, um ribeirinho se integrando com os animais da floresta no modelo Sessão da Tarde.
No enredo, o IBAMA seria o cara mau que apreende a Filó, separando-a do seu melhor amigo, do lar amado, para transferi-la para uma gaiola fétida e ainda multar o pobre Tarzan, enquanto a extrema direita seriam Os Goonies, amigos bacanas dispostos a enfrentar todos os perigos para fazer valer a amizade verdadeira de Filó e Agenor.
Então, de uma hora para outra, aqueles que debochavam de pessoas morrendo sufocadas na pandemia, os que negavam a própria doença, se engajaram nas campanhas “Free Filó”, “Somos todos Filó”, “Ninguém Solta a Mão da Capivara”… A Deputada bolsonarista Joana Darc invadiu a sede do IBAMA exigindo a libertação de Filó, enfrentando os seguranças e alternando histeria, crises de choro e demonstrações de autoridade. Ao invés de acabar na fogueira, como sua homônima francesa, a nossa Joana Darc acabou lacrando lindamente nas redes sociais com seu “heroísmo”.
Uma pena que a Joana Darc manauara estivesse ocupadíssima no Instagram quando surgiu o escândalo dos yanomamis em situação de absoluta miséria, suas crianças morrendo de fome e envenenadas, seus idosos parecendo etíopes nas secas, pois só isso explica não ter emprestado sua coragem para expulsar garimpeiros ilegais das terras indígenas.
Roger Moreira (@roxmo), ex-vocalista do Ultraje a Rigor, famoso pela canção Inútil (“a gente somos inútil”), aquele que não se abalou com a morte de 700 mil brasileiros na pandemia, levou o debate para o campo do liberalismo e criticou o governo que “tem mania de achar que sabe de tudo e se meter onde não é chamado” impedindo a Filó de viver “no seu habitat natural”.
O perfil bolsonarista Pilhado (@opilhado) protestou contra a “lacração hipócrita”, que resume o “famoso o ´amor venceu´”. Arrematou o Twiteiro: “o amor mentiroso destruindo o amor de verdade! Isso é o Brasil de hoje”.
Sérgio Camargo, ex-Presidente da Fundação Palmares, aquele que se apressou em afirmar que a morte por espancamento do congolês no Rio não tinha a ver com racismo, o mesmo que excluiu da lista de personalidades negras Madame Satã e Benedita da Silva, postou uma foto do Lula com a Luisa Mell, a qual havia defendido o retorno da Capivara à natureza, e do Agenor Tupinambá com a Filó, com o título: “as escolhas de uma pessoa definem seu caráter”.
De concreto, sabe-se que Agenor não é exatamente um ribeirinho, aquele morador da margem de rio amazônico na divisa da civilização com a floresta, para o qual é normal a integração com alguns animais selvagens que se domesticam pela proximidade e a comida. O pai da Capivara é um estudante de agronomia que tem uma fazenda de criação de búfalos em uma área invadida e irregularmente desmatada.
A própria multa recebida por Agenor não diria respeito exclusivamente à Filó, também abrangeria outra Capivara e uma Preguiça, que teriam morrido depois de serem capturadas por ele, além de uma Jiboia, Paca, Aranha e Coruja que teriam sido indevidamente aprisionadas para servir de chamariz em vídeos que o rapaz faz para o TikTok.
Na Terra do Tio Sam, o governador da Florida, republicano Ron DeSantis, trava uma cruzada contra Disney depois dela se opor à lei por ele instituída e que foi apelidada de “Don’t Say Gay”, proibindo a educação sexual nas escolas. Ron retaliou o parque assumindo o distrito onde ele se localizada e o qual há muitos anos havia sido cedido pra Disney.
Pesquisas mostram que a guerra contra a Disney melhorou a percepção de Ron, que pretende disputar a presidência, junto ao eleitorado norte americano. DeSantis é acusado de manipular dados da COVID para promover uma abertura econômica mais rápida do seu estado em detrimento de milhares de mortes evitáveis.
A extrema direita atual transita preferencialmente longe da realidade, dos problemas concretos, delira para não ter que enfrentar os fatos. Ao mesmo tempo em que finge se comover com uma capivara, mostra-se indiferente ao aumento do desmatamento no Amazonas relatado por satélites, as mortes por COVID, crianças índias envenenadas etc…
Num mundo em guerra, saindo da recessão pandêmica, com debates urgentes sobre taxa de juros, inflação e intervenção estatal desenvolvimentista, a direita radical se alterna entre um discurso infantil de Sessão da Tarde, com capivaras e ribeirinhos, e outro delirante de hospício com suas mamadeira-de-piroca, URSAL, vacina causando AIDS etc..
Então milhares de Tios e Tias do Zap seguem como zumbis na mescla Sessão-da-Tarde-Hospício trocando o mundo real por esse País das Maravilhas Radicais, perdendo pouco a pouco o contato com a realidade, suas relações familiares e sociais.
Se trata de uma estratégia desenvolvida pelos mentores desse movimento que ganhou alcance com Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos. A baiana Michele Prado (@MichelePradoBA), estudiosa da Far-right, no seu livro Tempestade Ideológica, destaca a atuação de Andrew Breitbart, que atuou junto com Steven Bannon, conselheiro de Trump, na estruturação da nova direita radical através do desengajamento moral.
Caminhe em direção à ira. Não se preocupe em ser chamado de racista, homófobo, sociopata, um xenófobo heteronormativo violento com impulsos fascistas. Eles dizem todas essas coisas sobre você porque estão mantendo você dentro do complexo, forçando você a responder ao manual deles. Eles querem pará-lo em suas trilhas. Mas, se você continuar, se disser a eles que pode parar com balas verbais e continuar andando, você enviará mensagens para as pessoas que estão torcendo por você, que concordam com você. É assim que você constrói um movimento invencível disposto a jogar com suas próprias regras (Righteous Indignation: Excuse Me While I Save The World, 2021, Andrew Breitbart).
A estratégia foi tão eficiente nos chamados MARs (Middle American Radicals), pessoas de classe média do centro dos USA que se sentem discriminadas pela nova ordem vigente, quanto no Brasil, onde filhas solteiras pensionistas de militares também entendem não receber o tratamento que seria devido em relação à sua condição. Também aderiram à radicalização as camadas sociais empreendedoras, compostas de pessoas que perderam o emprego e se sustentam dirigindo para aplicativos, prestando serviços como MEI e novos ricos. O ter um carro, ou mesmo apenas um CNPJ, confere uma diferenciação social, um sentimento de empoderamento que, entretanto, não corresponde a retribuição financeira desejada. Em comum um ressentimento contra um Estado corrupto que privilegia os seus funcionários, exige altos impostos e devolve muito pouco.
A direita radical oferece para essa massa as respostas simples, as quais lhe empoderam quando dizem que todos a enganavam e finalmente ela teve acesso a verdade de poucos. É, no final, um status social diferenciado, um reconhecimento intelectual e um lugar de fala em um mundo que nunca lhe deu bola. Então vem bem a calhar uma capivara, guerra contra a Disney, mamadeiras-de-piroca, ameaças comunistas, gayzificações etc., pois isso foge das questões que demandam raciocínios mais complexos e se acomodam com verdades embaladas. Os pensamentos rasos vão gerando um desengajamento moral onde mortes de crianças índias valem menos que o amor fake do Agenor pela Capivara.